Estava há quase uma década em um casamento feliz com a Letícia (Ordovás, de 52 anos, à dir. na foto ao lado) quando conhecemos a Keterlin (de Oliveira, 32 anos, à esq.), em 2013. Ela foi contratada no mesmo banco em que trabalhávamos, e a amizade logo se estabeleceu. Começamos então a fazer tudo juntos — passeios, conversas, festas. Poucos meses mais tarde, nos vimos os três apaixonados, algo inesperado, que jamais imaginaria acontecer comigo. Aquilo surpreendeu também minha mulher, que só ali descobriu que nutria sentimentos por uma figura feminina. Nenhum de nós havia engatado um relacionamento a três antes, mas, após uma boa reflexão, decidimos ver no que daria. Lembro até hoje a primeira vez que escutei a palavra trisal. Foi um amigo que, numa festa, nos apresentou dessa forma. Até ri. Para ser honesto, nem familiarizado com o termo eu estava, tudo era novo. Aí o tempo foi passando e, na pequena comunidade gaúcha de Novo Hamburgo onde morávamos, passamos a agitar a bandeira de que qualquer forma de amor é válida, desde que fincada em bases verdadeiras.
Passados dez anos, o preconceito e o desconhecimento ainda pesam sobre essa configuração do poliamor. Justamente por isso, teve tanto significado o ato de selarmos nossa união estável em cartório após a decisão judicial de agosto passado, um feito inédito no Brasil. A iniciativa de oficializarmos o casamento foi motivada por um fato importante: Keterlin ficou grávida, no início de 2023, uma gestação planejada. Ao formarmos um casal de três aos olhos da lei, queríamos ter certeza de que, quando o Yan nascesse, nossos nomes estariam todos na certidão — fato também sem precedentes no país. E foi o que aconteceu. Apresentamos nosso caso no tribunal, encaminhamos um dossiê de evidências fotográficas e de testemunhos provando que nossa relação deveria ser levada a sério, e conseguimos. Em outubro, nosso filho nasceu, formalmente, com duas mães e um pai.
Conforme nossa história foi se tornando pública, passamos a receber mensagens de apoio e carinho, mas também viramos alvo de uma enxurrada de críticas nas redes. Diziam: “É injusto sujeitar uma criança a um arranjo desses, imoral”. Foi a primeira vez que sofremos ataques com esse grau de violência. Antes, a grande resistência mesmo havia sido dos pais das duas, que cortaram contato com as filhas ao trazermos o caso à luz. Um baque. Felizmente, ambas voltaram a ter contato com a família, que aos poucos aceitou a ideia — os dois filhos do primeiro casamento da Letícia, aliás, estão entre os que ficaram do nosso lado. Já no ambiente on-line, não temos como demonstrar que uma união poliafetiva exige tanto respeito quanto um casamento a dois, então a discriminação continua firme. Nem olho mais os comentários para evitar me chatear.
Acho que o poliamor não é para todo mundo. Não é fácil. Costumo brincar que temos carinho em dose tripla, mas também precisamos de três vezes mais paciência. De resto, as asperezas e alegrias do dia a dia são as mesmas. Quanto ao Yan, o apelidamos de Afortunado, porque ele tem o amor não apenas de dois, mas de três pais. Está aí uma criança que vai aprender em casa a não nutrir preconceitos e a manter a mente sempre aberta, em um ambiente repleto de afeição. Na sentença do tribunal que reconheceu nossa união, o próprio juiz citou aquela música do Lulu Santos: “Eu quero crer no amor numa boa, que isso valha pra qualquer pessoa…”. Realmente vejo o novo começo de uma nova era, com menos ódio e mais diálogo na sociedade. Que nosso filho seja uma das pessoas a fazer parte deste mundo mais tolerante.
Denis Ordovás em depoimento dado a Amanda Péchy
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2024, edição nº 2875