Na polêmica dos celulares em escolas, os adultos têm culpa no cartório
Muitos pais celebram — em grupos de WhatsApp, onde mais? —, como se tivessem terceirizado o problema. Falta agora fazerem a lição de casa

Há uma luminosa novidade na volta às aulas: o banimento dos smartphones, inclusive nos horários de intervalo entre uma aula e outra e no recreio. As escolas ainda se adaptam, a lei federal precisa ser absorvida e seu regramento, aperfeiçoado, mas parece não haver outro caminho. Houve um tempo em que se andava de carro sem cinto de segurança e de moto sem capacete, mas não mais. Houve um tempo em que crianças e adolescentes podiam ligar os celulares no pátio. Acabou. Vive-se, portanto, agora em 2025, o início de uma era. O degredo eletrônico não impede, é claro, absurdos como o recente caso do grupo de bullying contra novatos do ensino médio acelerado por estudantes veteranos de uma escola de elite em São Paulo, o Santa Cruz. Enfim, há ainda um elefante na sala de cristais — mas, ao menos no período escolar, ufa!, os pais aplaudem a solução, com os filhos tocando a vida sem os dedos nervosos a correr os Reels. Muitos pais celebram — em grupos de WhatsApp, onde mais? —, como se tivessem terceirizado o problema. Falta agora os adultos fazerem a lição de casa. Sim, eles também têm culpa no cartório.
Uma recente leva de estudos comportamentais sublinha o estrago paterno. Segundo um levantamento da Sociedade Americana de Pediatria com mais de 10 000 famílias de adolescentes entre 12 e 13 anos, meninos e meninas, 79% dos pais usam aparelhos eletrônicos quando estão com os rebentos, invariavelmente durante as refeições. Os entrevistados foram instados a avaliar uma frase incômoda: “Quando estou com meu filho uso dispositivo de tela”. Deviam dar nota de 1 (discordo totalmente) a 4 (concordo totalmente). Cada ponto a mais foi associado a quarenta minutos extras da criançada plugada, de olhos vidrados. Uma outra pesquisa, realizada nas estações de metrô de Nova Delhi, na Índia, pela CyberMedia Research e a operadora Vivo, mostra que os adultos gastam diariamente 7,7 horas no celular e apenas duas horas no convívio com a prole. Detalhe: navegam, em média, uma hora e vinte minutos a mais que os herdeiros dos problemas.
Pais e mães admitem o exagero, reconhecem o erro, dizem cuidar do enrosco, mas a verdade inconveniente é que pouco fazem (veja o quadro). “Ao usar os aparelhos de maneira desregrada, criam um modelo para os filhos”, diz o psicólogo Cristiano Nabuco, pioneiro nos estudos das dependências tecnológicas no Brasil. A família é considerada pela psicanálise o primeiro laboratório experimental do comportamento social da criança. É ali, junto aos pais, que tudo começa, especialmente a imposição de limites.

O reinício das aulas no país com as novas regras mostra como os adultos precisam contribuir mais para o controle do problema. A reportagem de VEJA percorreu algumas escolas para acompanhar os primeiros dias de desconexão nas instituições escolares. Há alguma confusão, mas os alunos não têm saída, e só podem ligar o aparelho ao encerramento do turno. Os objetos repousam nas mochilas ou escaninhos. Os donos das traquitanas demonstram descontentamento, é natural. O obstáculo, insista-se, para que acionem o “off” são os responsáveis, que parecem desorientados. Em janeiro, ainda durante as férias, as escolas prepararam o terreno, antevendo os problemas de adaptação. Nem os professores, que tiveram treinamentos específicos, passaram incólumes. “Estavam todos ansiosos”, diz Cláudia Tricate, diretora do Colégio Magno/Mágico de Oz, em São Paulo. “Sabem que precisam dar o exemplo.”
Com alguma dose de desfaçatez, pais e mães chiam por terem perdido a comunicação com os filhos — esqueceram como era no passado recente. Bastava combinar horários de saída, deixar tudo acordado e, em casos especiais, pedir que a turminha fosse à secretaria, para conversar por meio de uma traquitana chamada telefone fixo (sim, ele ainda existe). “O celular virou o novo cordão umbilical entre pais e filhos”, diz Esther Carvalho, diretora do Colégio Rio Branco, também de São Paulo. “Eles se sentem mais seguros com o aparelho, que muitas vezes atrapalha e dá complexidade a situações absolutamente banais.”

Na rede Start Anglo Bilingual School, com quatro unidades em São Paulo e uma na Bahia, os genitores deram mais trabalho que as crianças. O serviço de mensagens das secretarias bombou como nunca. Em alguns casos, dado o nervosismo, foi preciso até oferecer os celulares do colégio para que os pequenos pudessem falar com o pessoal em casa, tamanha a ansiedade das famílias com a nova regra. Muitos estavam acostumados a enviar recados para os filhos no meio da aula, pelos motivos mais variados. “Só no terceiro dia os ânimos acalmaram”, diz Juliana Diniz, diretora do Start. “O uso excessivo não nasce com os filhos, mas com os pais.” Como alternativa, o Start montou, nesta semana, as “mobiles zones”, destinadas às ligações rápidas, mas sempre na presença de um vigia, que fica de olho no tempo da ligação. Foi o modo que encontraram de contentar os pais, que alegam alguma urgência irreal ou exagerada.
Não será fácil chegar ao “novo normal”, para ficar com o chavão que contaminou o período da pandemia de covid-19. Reafirme-se: com o pessoal na escola, jogo resolvido. Mas, fora do colégio, é possível controlar o tempo adequado de uso de telas pela mocidade, como preconizam os especialistas (veja no quadro)? Os dias de quarentena derivada do vírus, e lá se vão cinco anos desde a eclosão do microrganismo, fizeram o aprendizado migrar integralmente para as plataformas digitais, e foi compulsório afrouxar as regras. Além de precisar dar continuidade aos estudos, o isolamento fez com que o celular e as redes sociais se transformassem nas únicas vias de interação entre as crianças trancadas em casa. “O problema é que, depois da retomada da vida normal, continuamos a usar os celulares do mesmo modo que fazíamos no tempo excepcional”, diz Bruna Gasparotti, mãe de três filhos, dois deles ainda no ensino fundamental. Há solução? Sim, embora seja complicada: cortar aos poucos o chamado “cordão umbilical digital”, de modo a interagir com os filhos à moda antiga, olho no olho.
A humanidade precisa, enfim, aprender a conviver com a tecnologia que virou uma segunda pele. O smartphone foi adotado mais rapidamente do que qualquer outra invenção eletrônica, mais do que o rádio, o computador pessoal e a televisão, inicialmente em preto e branco e depois em cores. O tempo apaga as memórias, mas lá nos idos dos anos 1940, nos Estados Unidos, e 1950, no Brasil, o televisor também foi tratado como perigo para a saúde, para as relações sociais. Tinha ao menos o dom de reunir as famílias, mas qual o quê, não podia fazer bem. Houve acomodação, investigações científicas identificaram os aspectos negativos, mas também os sobejamente positivos. O celular, em sua infância, ainda precisa ser traduzido. Não há dúvida, captura a atenção de gente jovem, cria uma “geração ansiosa”, para ficar com a expressão celebrizada pelo título de um livro entre os mais vendidos, no mundo todo, do psicólogo americano Jonathan Haidt.

A educação digital, e não a proibição que grassa nas escolas, é a estrada a ser percorrida. Mas algo precisava estancar o vício, para que então se elaborem caminhos sensatos. Eles passam, forçosamente, pela postura parental, e não há como escapar do comprometimento. “Os jovens abaixo dos 25 anos ainda não têm a capacidade de frear a chamada escalada dos riscos”, diz o psicólogo Cristiano Nabuco. “Eles precisam de ajuda.” E atire a primeira pedra quem nunca, dissimulado, respondeu a um repreendimento dos filhos ao se ver encurvado, com a resposta padrão: “É rápido, estou trabalhando e já desligo”. Não há como fugir de uma verdade inconveniente: o bom exemplo precisa vir de casa.
Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930