Parte das mulheres americanas fazia qualquer coisa para diminuir o tamanho do bumbum. A preferência era por seios fartos. Mas foi só a atriz e cantora Jennifer Lopez aparecer ostentando um traseiro curvilíneo e volumoso no videoclipe de Booty, em 2014, com seu apelo de “se esforcem, balancem, trabalhem e mexam sua bunda grande”, que o jogo mudou. Ter um derrière avantajado se tornou uma obsessão em certas camadas dos Estados Unidos, e convém nunca generalizar. A partir dali, iniciou-se uma corrida aos consultórios de cirurgia plástica atrás da lipoenxertia glútea, nome técnico para o procedimento ridiculamente conhecido como brazilian butt lift (lifting de bumbum à brasileira). Ele consiste na aspiração da gordura de áreas do corpo onde é excedente e sua injeção nas nádegas com o objetivo de deixá-las mais arredondadas.
JLo nunca assumiu publicamente ter feito a cirurgia. Outros nomões, como Kim Kardashian, Beyoncé e Nicki Minaj, admitiram, sim, e com orgulho, ter recorrido ao procedimento. Segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética, somente em 2020 houve mais de 40 000 operações do tipo. Em 2021, foram 61 000. Nas contas da Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos, os Estados Unidos registraram um aumento de 98% na remodelação das nádegas desde o ano passado. A cidade campeã de procedimentos é Miami. Por lá, pode-se dizer que o médico Michael Salzhauer é o rei dos bumbuns avantajados por ser o mais procurado para a realização da cirurgia. Salzhauer atribui o interesse à fascinação pelo estereótipo da beleza ao sul do Equador. “A operação é chamada de lifting de bumbum à brasileira porque, quando se pensa em mulher brasileira, vêm à mente nádegas maiores e empinadas”, já chegou a dizer, sem nem mesmo perceber o tamanho da bobagem preconceituosa e bocó que disparou.
Virou mania entre os americanos acrescentar o apodo “brasileiro” a recursos de correção estética feminina. É reprovável, também, a menção a um desenho de depilação que ficou conhecido nos EUA como brazilian wax (os pelos pubianos e do ânus são retirados com cera quente). Tanto o brazilian butt quanto o brazilian wax reforçam a maneira sexista como a brasileira e as latinas em geral ainda são vistas mundo afora. “Essa ideologia sexualizada pela cultura da ‘mulata exportação’ vem de muito tempo e é uma forma misógina de rotular a brasileira”, diz Marina Costin Fuser, doutora em estudos de gênero pela Universidade de Sussex, na Inglaterra. “Vender esses códigos, mesmo como forma de empoderamento, fortalece o rótulo, ainda mais nos EUA, onde tudo é sexista.” É impressionante, mas até hoje existem por lá a Hooters, rede de lanchonetes onde as atendentes usam shortinhos apertados, e espaço para fotos como a de Kardashian equilibrando uma taça de champanhe no bumbum, foto de capa da revista Paper.
Não se discute a liberdade de mudar o corpo. Os procedimentos médicos estão aí e, desde que feitos com segurança e por profissionais habilitados, podem devolver a autoestima a quem está precisando. A questão é lutar para acabar com a cristalização de preconceitos e a venda às mulheres de um conceito de beleza que as submeta à antiga ideia de agradar aos homens. Está mais do que na hora de enterrar essa bobageira sem pé nem cabeça.
Publicado em VEJA de 8 de junho de 2022, edição nº 2792