Novidades tecnológicas marcam onda de livros que contam histórias de famílias
Tendência é alimentada pelas técnicas modernas de recuperação de fotografias e novos recursos de publicação

“Se um reino é uma grande família, uma família, da mesma forma, é um pequeno reino, dilacerado em facções e exposto a revoluções.” A frase, do pensador e escritor inglês Samuel Johnson (1709-1784), abre um livro literalmente colossal (1 384 páginas, 1,8 quilo), O Mundo — Uma História Através das Famílias, do britânico Simon Sebag Montefiore. A ideia é mostrar que as pequenas aventuras domésticas contam os avanços e recuos da civilização. Dito de outro modo: o olhar miúdo, dentro dos lares, não pode nunca ser desdenhado. O cartapácio de Montefiore é como um portão de entrada de um fenômeno muito interessante: a profusão dos chamados livros de família, filhos de bonitos relatos, atrelados às tecnologias de recuperação de fotografias carcomidas pelo tempo e à relativa facilidade de publicação, com recursos eletrônicos. A onda mundial chegou ao Brasil.
São obras como Drora, o relato das recordações de uma família judaica marcada por migrações e recomeços. A personagem central é Eveline Alperowitch, que, em depoimento emocionado, costura os momentos decisivos da turma toda, a começar pelo casamento dos pais, a união dos Landau com os Ghingold. O Legado é a saga de três gerações dos Lacombe, conduzidos em elegante prosa pelas três matriarcas do grande grupo, em texto editado pela escritora e jornalista Marta Góes. As duas obras — de tiragem pequena e circulação restrita, sob medida, porque assim manda o figurino de reserva e modéstia — fazem parte do catálogo da editora Livros de Família, uma das muitas que têm despontado no mercado.
É movimento que ganhou tração durante a quarentena imposta pela covid-19. “A pandemia fez as pessoas pensarem mais em suas origens”, diz André Viana, fundador da empresa. “A produção desses volumes é um exercício de dar sentido ao passado e, muitas vezes, de organizar diferentes versões de uma mesma narrativa.” Outra empreitada de relevo é a proposta da Arquivo & Enredos, especialmente afeita a transformar conversas e entrevistas extensas em textos claros e lindamente ilustrados. Um dos projetos conduzidos pela editora é a aventura de oito casais de judeus sefarditas que trocaram o Egito pelo Brasil em meados do século XX. “Eles queriam transmitir às futuras gerações o maior patrimônio que tinham, o modo de encarar a vida, mesmo diante de tantas adversidades”, diz Daisy Perelmutter, socióloga e historiadora, diretora e uma das criadoras da plataforma.
Nota-se também o pequeno fenômeno em companhias mais antigas. O Grupo Editorial Casa do Novo Autor, criado há 36 anos, começou a receber pedidos de publicações dessa nova vertente. Cresceu ainda a procura por serviços de excelência em lançamentos eletrônicos, como a e-galáxia. Um dos títulos do catálogo: Memórias de um Tempo Não Vivido, relato montado a partir das cartas trocadas pelos pais da autora, Eliana Rocha (que, dada a qualidade, ainda neste ano será impresso). O ponto em comum a unir todos os caminhos: o prazer de organizar os vaivéns de pessoas reunidas em torno de sobrenomes.

Há, nesse fascinante processo de agregar informações para contar histórias, um quê de terapia familiar — envolve sorrisos e alegrias, mas também pranto e dores, sempre na intimidade das casas, convém reafirmar. Não são trabalhos para serem levados à livraria, embora alguns possam ter esse destino. A restrição, contudo, não significa desdém com a qualidade — ao contrário. Há zelo com as palavras, com as imagens e com a diagramação. O resultado final, para além da emoção dos conteúdos, são peças de esmero, para agradar aos olhos, expostas em mesas e estantes com orgulho. Os valores dos serviços variam muito: podem ir de 20 000 reais a 70 000 reais, a depender do tamanho e ideias, sem contar os trabalhos de diagramação e impressão. “Mas, se pensarmos bem, é um presente encomendado para o futuro, capaz de durar centenas de anos se bem conservado”, diz Viana, da Livros de Família. “Tem, portanto, custo aceitável.” Sim, sobretudo por ser assumido coletivamente pelos parentes.
A bonita tendência dá as mãos a uma modalidade da literatura em ascensão, a chamada autoficção, recurso em que histórias pessoais e invenções caminham juntas. Trata-se, enfim, de casar passagens de vida, características físicas e psicológicas dos autores a contextos ficcionais, embaralhando o jogo, como adorável brincadeira. Fazem muito sucesso hoje, nesse campo, os franceses Annie Ernaux (autora de O Lugar; Os Anos; O Acontecimento), Nobel de Literatura de 2022, e Édouard Louis (Quem Matou Meu Pai; Mudar: Método). Não é o caso de supor que relatos familiares possam, como favas contadas, apresentar ao mundo novos grandes escritores, como Ernaux e Louis. Mas é inquestionável: as ricas e emocionantes aventuras familiares merecem (e precisam) ser contadas.
Partem do detalhe para abraçar o mundo, pondo em contexto coletivo o que soava particular e indizível. De Eveline Alperowitch, em um dos primeiros capítulos de Drora: “Durante muito tempo pensei que a guerra não tivesse me afetado de nenhuma maneira. (…) recentemente, quando me propus a contar a história a meus netos, consegui dedicar-me de fato ao assunto, e percebi que a guerra sempre esteve em mim, de um jeito ou de outro”. Os livros de família são, portanto, trilhas apaixonantes. “É um modo de fazer com que as histórias pessoais de hoje não se percam e possam ser redescobertas no futuro”, diz a editora Daisy Perelmutter. Uma família, como ensinou Samuel Johnson, é um pequeno reino.
Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2025, edição nº 2927