Considerado um dos males do século XXI, o estresse é uma reação do organismo a situações de perigo ou ameaça que, de tão incidente, subiu ao degrau das epidemias, atingindo 90% da população mundial em algum nível, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os primeiros estudos sobre o tema foram conduzidos pelo endocrinologista canadense Hans Selye, ainda na década de 1930, com o objetivo de entender a mola propulsora desse incômodo que tanto preocupa por seu elevado potencial de desencadear variados problemas físicos e mentais.
Três décadas mais tarde, a investigação chegou ao mundo do trabalho, prato cheio para a produção de estressados. A ideia sempre foi fugir dessa deletéria zona de alta pressão, mas eis que uma banda da humanidade, embalada pela rotina corporativa moderna, começou a se gabar de suas jornadas extenuantes, impulsionadas por agendas lotadas e noites maldormidas. Para essa turma, é como se viver um dia de labuta puxado após o outro fosse sinônimo de dedicação e competência. O estresse seria assim uma condição quase indissociável da alta performance, motivo de orgulho, algo a ser enfatizado e exibido.
O fenômeno, que muda de tonalidades como um camaleão, recém mobilizou um grupo de especialistas em relações corporativas, sociólogos e filósofos da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, resultando em uma vasta pesquisa sobre o tópico. Os pesquisadores criaram personagens fictícios que, cada qual de um jeito, falavam de quão estressados viviam em seus postos. A ideia era observar sob a lupa científica o impacto que o discurso de valorização ao batente excessivo e o próprio esgotamento mental causavam em centenas de profissionais que, ao lado dos exagerados, levavam a carreira em bases mais tranquilas, mesmo em cargos de comando. A investigação, executada por meio de conversas on-line, constatou que o comportamento de sublinhar o tempo todo as horas trabalhadas, o cansaço e a dureza não faz despertar admiração, mas dúvidas sobre a competência da pessoa, por ser incapaz de alcançar um equilíbrio.
Não raro, esse tipo tão comum foi descrito como “o colega desagradável”. “Eles acham que estão sendo bem-vistos, mas na verdade só estão prejudicando a própria imagem”, afirmou a VEJA Jessica Rodell, coordenadora do estudo. O arquiteto Henrique Damasco, 60 anos, é um desses que evitam ao máximo compartilhar terreno com os que fazem reverberar escritório afora sua longa via-crúcis no batente. “Não consigo conviver com pessoas estressadas, que ficam espalhando esse clima ruim. Isso me desestimula”, diz.
O levantamento ainda detectou um segundo desdobramento negativo do assíduo contato com a fatia de homens e mulheres que batem no peito ao discorrer sobre como o trabalho lhes toma por completo: eles passam o estresse adiante, como “um contágio”. Nesse ponto, os especialistas da Geórgia deram um passo além. Uma década atrás, o neurocientista Tony Buchanan, da universidade americana de St. Louis, descobriu que o estresse funciona como um vírus, espalhando-se entre os indivíduos por meio de um mecanismo em que a pessoa absorve nas camadas do inconsciente modos de agir alheios graças aos “neurônios espelhos”, presentes numa região do cérebro responsável por funções cognitivas complexas. Agora, os pesquisadores expandiram o saber na área ao concluir quanto a fala também ajuda a disseminar os picos de tensão, a ponto de fazer quem está exposto a ela ficar mais propenso a sofrer de distúrbios como o burnout. A enfermeira Leilane Oliveira, 35 anos, que já teve muito colega prosa da sobrecarga, dá voz aos críticos. “Eles tentam valorizar suas tarefas, mas muitas vezes nem estão tão ocupados quanto dizem e fazem muita gente se sentir mal”, dispara.
O ciclo do mal-estar começa quando o funcionário se vê pressionado a adotar o mesmo padrão dos que propagam o “culto ao estresse”, fazendo o clima pesar. Felizmente, já há alguma consciência de que essa engrenagem em nada agrega e, notando estar acima do tom, tem gente que revê o mau hábito. Aconteceu com a assistente social Sabrina Souza, 35 anos e muito estresse acumulado e divulgado. “Eu tenho medo de ter atrapalhado alguém por eventualmente ter sido essa pessoa que expõe a sensação de trabalhar em excesso”, admite. Além dos efeitos sociais, tal reação fisiológica, como já comprovado, pode prejudicar a memória e a capacidade para tomar decisões. “A saúde física também é afetada, aumentando os riscos de doenças cardiovasculares e problemas digestivos e no sistema imunológico”, alerta a neurologista Marleide da Mota Gomes, da UFRJ. Nesse ambiente, é compreensível que a produtividade geral caia. “Na prática, o estresse propagado no ambiente de trabalho traz dificuldade de concentração, erros e atraso nas tarefas”, explica a psicóloga Joselene Alvim, da UNOESTE.
Poderia supor-se que o imenso contingente que migrou para o home office de forma permanente, no cenário pós-pandêmico, não daria gás ao fenômeno do enaltecimento às jornadas extenuantes, até pela flexibilidade conquistada e a distância dos colegas. Mas eis que emergiu um desdobramento inesperado nessa modalidade que se multiplicou. O isolamento acabou fazendo com que as pessoas amplificassem suas queixas sobre sobrecarga, o que tem uma razão de fundo objetivo — segundo o relatório People at Work, do ADP Research Institute, que se debruçou sobre uma vasta amostra em dezessete países, 82% relatam episódios de estresse pelo menos uma vez por semana, fruto da dificuldade de demarcar uma fronteira entre trabalho e lazer, mais diluída em casa. Mas pesa também aí um outro fator, este rodeado de subjetividade. Longe do olhar de seus pares e superiores, observa-se um pendor para mostrar o que e quanto se produz. “As pessoas se sentem pressionadas a provar que realmente estão trabalhando”, avalia Paula Esteves, à frente da Cia de Talentos e diretora da Associação Brasileira de RH.
Foi a Revolução Industrial, a partir do século XVIII, que cimentou a filosofia de que produtividade e eficiência deveriam se sobrepor a qualquer outro valor. “O trabalho árduo ganhou um status como nunca antes, à custa do bem-estar pessoal”, diz a especialista Sally Maitlis, da Universidade de Oxford. O mundo girou então de forma radical, até desaguar num caldo de cultura em que o estilo de vida liderado pela tribo dos workaholics ascendeu nos escritórios dos Estados Unidos, capitaneados por expoentes da tecnologia do Vale do Silício. Ventilou-se aí com força total, na década de 1990, a ideia de extrapolar limites físicos e mentais para alcançar grandes feitos e crescer. Mas a passagem do tempo fez gente do calibre de Bill Gates, fundador da Microsoft, incluir na equação outro componente — o equilíbrio. “Eu forçava todos a meu redor a trabalhar muitas horas. À medida que fui ficando mais velho, e especialmente depois que me tornei pai, percebi que, tanto em termos de fazer o seu melhor trabalho quanto de ter uma ótima vida, essa intensidade nem sempre era apropriada”, diz o empresário, aos 68 anos.
Na tentativa de duelar contra a corrente do estresse, a OMS recomendou que as empresas promovam treinamentos concentrados nas lideranças, de modo que consigam frear sua disseminação e lidar com quem vive sobressaltado. Ainda falta chão. De acordo com um relatório global do ADP Research Institute, 46% dos trabalhadores ainda se sentem à deriva quando o papo é o bem-estar mental, assunto que vem saindo das sombras, mas exige mais atenção. “As empresas precisam criar um espaço seguro para essa discussão”, avalia a especialista Paula Esteves. Diante da escala do problema, Jessica Rodell, da Universidade da Geórgia, enfatiza: “É bom que as pessoas pensem duas vezes antes de se gabar de como estão estressadíssimas com o que fazem”. Estresse só traz estresse — e ninguém, ninguém mesmo, sai ganhando.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2024, edição nº 2910