A inveja ganha força na era das redes – e pode prejudicar a saúde
Nos dias de hoje, o sentimento se exacerba e provoca angústia, mostra estudo. Mas ele também pode ser um bom combustível à evolução de cada um
Em A Divina Comédia, o italiano Dante Alighieri (1265-1321) descreve de forma assustadora o castigo final daqueles que, em vida, foram invejosos. E o cenário, com o perdão do trocadilho, não causa inveja a ninguém. Empoleirados à beira de um penhasco, seus olhos são costurados, já que a origem da heresia reside na visão. Eles precisam apoiar-se uns nos outros para não despencar, algo a que não estavam habituados. O sentimento que arrastou essa turma para o inferno dantesco é dos mais humanos, tão recorrente que o papa Gregório I (590 d.C.-604 d.C.) o incluiu no rol dos sete pecados capitais. Muitas chacoalhadas históricas e séculos depois, a espécie segue naturalmente às voltas com ele, impulsionado agora pelas incontornáveis engrenagens das redes sociais. Um recente estudo publicado na prestigiada Nature, que se debruçou sobre o frenesi on-line de centenas de pessoas, revelou que é ela, a inveja, o principal subproduto da navegação pelos territórios de Facebook, Instagram e X, o que pode se desdobrar em outras tantas emoções negativas, levando até à depressão.
Lá atrás, na Grécia Antiga, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) deu à inveja uma definição bem simples e direta — ela é “a dor pela boa sorte do outro, estimulada por aquele que tem o que deveríamos ter”, dizia o filósofo. Para que a sensação aflore, portanto, é preciso estar em contato com um semelhante que pareça mais bem-sucedido e afortunado, o que o universo virtual promove em escala incomparável — e com um filtro que amplifica o mal-estar. “As redes viraram um lugar de fantasia, palco de um constante bombardeio de imagens positivas, muitas vezes ilusórias, mas que todo mundo quer para si”, disse a VEJA o psicólogo Robert Sternberg, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos. E eis que se forma aí um solo fértil para ambicionar o glamour e a ideia de felicidade disseminados no post do vizinho. A Universidade Humboldt, em Berlim, entrevistou assíduos frequentadores das redes e chegou a um número superlativo: uma de cada três pessoas declara com todas as letras ter algum tipo de inveja. Os pesquisadores têm certeza de que uma porção também vê o sentimento vicejar, mas não o assume.
As raízes do que move os invejosos estão plantadas na evolução humana, tendo sido surpreendentemente, desde os primórdios, um ingrediente ao sucesso do Homo sapiens. A comparação, afinal, serviu de parâmetro para os indivíduos avaliarem seu lugar relativo na sociedade e, assim, permanecer competitivos em duas frentes: na busca por recursos e por parceiros. Daí veio um tremendo empurrão ao autoaprimoramento (e, não raro, à destruição de rivais na guerra pela sobrevivência). Indissociável da própria existência, a inveja também embute uma angústia que varia de patamar. Segundo o psicólogo americano Paul Ekman, que se notabilizou por enunciar as seis emoções básicas universais, ela se situa entre a raiva e a tristeza, podendo causar um sofrimento agudo. “Quando vejo pessoas aproveitando muito a vida nas redes, me sinto de algum modo deixada para trás. É como se o que eu tenho não fosse mais bom o suficiente”, reconhece a universitária Palloma Miranda, 22 anos.
O invejoso costuma percorrer uma gama de sentimentos, experimentando vergonha, culpa e ressentimento. Nesse incômodo cipoal, os especialistas distinguem uma face benigna da emoção de sua expressão mais maligna. Embora dolorosa, a primeira pode pavimentar uma trilha para o aprimoramento pessoal. “Costumo me sentir mal quando ex-colegas da faculdade avançam na carreira com maior rapidez, mas isso faz com que eu me mexa e vá atrás de minhas conquistas”, relata o arquiteto Thulio Moreti, 35 anos, que briga justamente para neutralizar aquela inveja que leva a ações destrutivas, fincadas em pensamentos hostis e em atos para prejudicar outrem. Os extremos desse complexo caldeirão aparecem em profusão na mitologia grega (quem não se lembra que a deusa Atena transformou a talentosa Aracne em aranha depois de perder para ela uma competição de tecelagem?) e na literatura (em Otelo, de Shakespeare, o general mouro promove o soldado Cássio no lugar de Iago, desencadeando uma trama de vingança cujo desfecho é a morte de quatro inocentes, inclusive a do protagonista).
A neurociência já mergulhou nas profundezas da mente para entender os impactos da inveja. Uma das relevantes descobertas é que essa emoção põe em plena atividade uma região do cérebro chamada córtex cingulado anterior, associada à dor física, e pode reduzir o bem-estar no longo prazo. Um estudo da revista americana Social Science & Medicine, que se debruçou por oito anos sobre uma amostra de 18 000 indivíduos, reforçou isso ao observar que os que afirmavam ser enredados por tal sensação apresentavam uma pior saúde mental. É cedo na vida que a inveja começa a se pronunciar, de acordo com vasta investigação conduzida pela psicanalista austríaca Melanie Klein (1882-1960), seguidora de Sigmund Freud (1856-1939). Foi ela a primeira a dizer que a inveja se manifesta nos primeiros anos de vida, quando a criança não é sequer capaz de enxergar-se como um ser independente do mundo que a cerca. “É como uma cegueira. O indivíduo passa a ver o outro e a si mesmo de forma distorcida”, afirma Renata Bento, da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
O alvo da inveja costuma ser aquelas pessoas com quem se estabelece uma identificação. “Ela desperta quando alguém relativamente semelhante a nós possui algo importante que nos falta”, ressalta o psicólogo americano Manuel Gonzalez, da Universidade Estadual Montclair, em Nova Jersey. Por isso, mostram as pesquisas, é tão comum que esse sentimento se direcione a alguém do mesmo sexo, idade e estrato social. Em meio à imensidão das redes, a coordenadora de marketing Danielly Negreti, 29 anos, percebeu que a navegação lhe trazia a permanente sensação de ter uma “vida imperfeita”, aquém da de gente de sua geração. “Quando amigos atingiam um objetivo que eu poderia ter alcançado, mas não consegui, me batia aquela dor”, diz ela, que, de tanto penar com as comparações que fazia, tomou a radical decisão de abandonar sua conta no Instagram.
“Inveja é a dor pela boa sorte de outra pessoa”
Aristóteles, filósofo grego (384 a.C. - 322 a.C.)
Inata à humanidade, a inveja nunca será varrida do mapa das emoções — a questão é como mantê-la em níveis saudáveis. Fundador da dinastia de poderosos banqueiros que se apossaram da política e impulsionaram o Renascimento nas artes e nas ciências, Cosme de Médici (1389-1464) se deteve sobre o sentimento que andava exacerbado na bela cidade italiana de Florença em seu tempo. Ele dizia que era como “uma erva daninha virulenta e natural” e que seria inútil tentar erradicá-la, mas advertiu: “Apenas não a regue”. “Os humanos tendem a se concentrar naquelas qualidades que aspiram, mas não têm. Precisamos voltar nossa atenção para o que somos capazes de fazer”, enfatiza Gonzalez, da Universidade Montclair. Saltar esse degrau exige um esforço ao que tudo indica muito válido, uma vez que conduz ao bem viver. Irônico e realista, o ensaísta americano Joseph Epstein sabiamente sentenciou: “Dos sete pecados capitais, apenas a inveja não tem graça alguma”.
Com reportagem de Paula Freitas
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877