Precursor do cubismo, Paul Cézanne (1839-1906) observava a obra de Claude Monet (1840-1926), figura central do impressionismo, com admiração, mas lhe reservava uma alfinetada aqui, outra ali. “Monet é apenas um olho, mas, meu Deus, que olho!”, definiu Cézanne. Era um momento em que a arte alçava voos para muito além dos ateliês, desgarrando-se do academicismo para se voltar às ruas, de onde artistas como Monet, embebido da efervescência da modernidade parisiense, retiravam um inesgotável repertório de cenas. Tomar como ponto de partida a realidade à sua volta, porém, não subtraía de seus pincéis a habilidade para cravar sentimentos e subjetividade nas telas. Esse rico mundo interior que deixava extravasar, no qual o olhar era apenas o princípio, aparece com tintas jamais vistas na recém-lançada biografia Monet: The Restless Vision (A Visão Inquieta, em tradução livre), da crítica de arte britânica Jackie Wullschläger. Baseado em cartas nunca antes analisadas, o livro abre uma janela desconhecida para a intimidade do mestre e conta como as mulheres que cruzaram sua vida tiveram papel decisivo em sua trajetória.
O ano era 1865, e Monet viu-se fisgado por Camille Doncieux, então com 25 anos, modelo que ele e os colegas Renoir e Manet retratavam. A paixão fulminante pela jovem de jeitão despreocupado teve lá seus percalços — ela acabaria engravidando antes do casamento, escândalo que levou os pais de Monet, financiadores de sua carreira, a romper laços com o filho. Quando Jean nasceu, o pintor convenceu dois amigos a cometer perjúrio e deixar anotado na certidão de nascimento que ele e Camille já eram marido e mulher. Foram tempos de penúria, em que vivia pedindo dinheiro emprestado. Tamanho estresse gerou uma cegueira temporária (mau que o afetaria mais tarde, aí em decorrência de catarata) e, em ato de desespero, Monet se jogou nas águas do Sena. “Felizmente, nada ruim aconteceu”, ele registrou em carta.
Apesar dos altos e baixos, Camille era, segundo sustenta a autora, a própria encarnação da leveza e da espontaneidade que marcaram a pintura à época. “Não é exagero dizer que ela é a musa da felicidade impressionista, inspirando a primeira fase de Monet, permeada por cenas extrovertidas do cotidiano”, falou a VEJA a especialista. Com talento para moda e jardinagem, Camille posou para o polêmico Almoço na Relva, de 1866 (uma leitura do quadro homônimo de Manet), e surge luminosa ao lado do filho em Mulher com Sombrinha. Essa etapa encerrou-se com sua precoce morte, em 1879, vítima de um câncer. Devastado pelo luto, Monet voltou-se para dentro, distanciando-se da pintura figurativa e das cenas da sociedade em frenesi.
Eis que o amor novamente lhe bateu à porta ao engatar um romance com Alice Raingo, viúva de um de seus grandes colecionadores, Ernest Hoschedé. Foi o próprio Monet que, já bem de vida, arcou com o funeral. Um ano depois, casou-se com a intensa Alice. “Dona de uma personalidade quixotesca e ardente, mas respeitável integrante da burguesia, ela ajudou a tornar a obra de Monet mais rica e madura”, analisa Jackie. Todos esses acontecimentos trouxeram às telas um quê de melancolia e uma reflexão sobre a passagem do tempo, tão presente em telas como as da série Manhãs no Sena. “Monet fez questão de escolher parceiras tão comprometidas com sua arte quanto ele, que não se interessava por elas como objetos eróticos, tal como acontecia com Picasso”, pontua a autora.
A estabilidade que Monet encontrou com Alice lhe deu paz para mergulhar em suas vastas pesquisas sobre luz e movimento. Juntos, compraram a hoje tão visitada propriedade de Giverny, próxima a Paris, onde cultivavam um exuberante jardim. “Trazendo a natureza para casa, Monet potencializou sua capacidade de observar as variações de cor na atmosfera”, explica Felipe Martinez, professor de história da arte na Universidade de Amsterdã. Após duas décadas, ele se veria viúvo outra vez, paralisando os trabalhos por três anos. É quando uma terceira personagem feminina entra em cena, a filha de Alice, Blanche Hoschedé, que passou a cuidar daquele a quem via como uma espécie de pai. O afeto e a veia prática — ela carregava telas e cavaletes — forneceram as condições para Monet embarcar, aos 73 anos, no ambicioso projeto das Ninfeias, iniciado às vésperas da I Guerra.
Embora não se encaixe no imaginário do artista atormentado e indomável, Monet tinha seus “saltos extremos de humor”, segundo Alice escreveu, enquanto a enteada Blanche se referia a seu “caráter violento, muito vivaz, mas de bom coração”. Arrasado pelo luto, Monet chegou a queimar todas as cartas recebidas das duas esposas. Também era dado a rebeldias, como quando foi ao Louvre com a turma impressionista para copiar os velhos mestres e fugiu do museu por uma janela, instalando-se na varanda para pintar o vaivém nos bulevares. “Monet desbancou história e religião como os principais temas da arte e os substituiu pelo que estava ao seu redor”, ressalta a curadora Frances Fowle, da Universidade de Edimburgo. E lá estavam as mulheres, que tanto impacto tiveram sobre sua existência. Como certa vez disse o amigo Marcel Proust (1871-1922), autor de Em Busca do Tempo Perdido, “Monet nos mostrou como amar com os olhos”. E que olhos!
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874