Em uma rara manifestação de modéstia, Steve Jobs (1955-2011), o gênio da Apple que idealizou o iPhone, dizia que mentes criativas como a dele “na realidade não inventaram nada, só viram algo que escapou aos outros”. Para ele, criatividade era simplesmente a arte de ligar os pontos e conectar ideias. Dito assim, parece fácil, mas é de elevada complexidade a habilidade envolvida nessa colagem de pensamentos dispersos, uma junção que exige não só manter a mente aberta, mas dedicada à curiosa observação do entorno com o constante ímpeto de transformá-lo. A inventividade humana sempre esteve associada aos grandes visionários de todas as áreas, até que a ciência entrou em cena e começou a dissipar o mito de que apenas alguns integrantes da espécie são premiados com o dom dos criativos. Não é verdade. O que já se sabe, a partir de sólidas descobertas, é que essa capacidade, tão valorizada no século XXI, pode ser estimulada e talhada por toda a vida. E, quanto mais cedo, melhor.
Estudos recentes, um deles da Universidade Harvard, examinaram minuciosamente o cérebro no momento em que ele é instado a se debruçar sobre um problema e a obter caminhos para sua resolução. Ficou claro que, diante do desafio, múltiplas regiões da mente são acionadas ao mesmo tempo, promovendo uma ebulição capaz de descortinar um leque de possibilidades para sua solução. É justamente dessa diversidade de trilhas que pode emergir o inesperado, a criação com letras maiúsculas. O mergulho dos cientistas de Harvard, com seus aparelhos de ressonância magnética, enfatiza ainda que a criatividade não se dá sobre uma folha de papel em branco: um repertório de experiências e conhecimento acumulado fazem toda a diferença para aquele almejado salto rumo à novidade. Uma constatação que passa por cima de outra máxima cristalizada, a de que as invenções são, basicamente, fruto da inspiração pura.
O apreço de hoje pelo poder inovador foi medido em um levantamento da consultoria McKinsey segundo o qual, até 2030, a demanda por profissionais criativos aumentará em até 40% na Europa e nos Estados Unidos, deixando cada vez menos espaço para os repetidores de tarefas moldados para a era industrial. Que fique claro o que está no radar de recrutadores e CEOs: não se trata apenas de ter aquele estalo original — ele também tem que se provar útil e aplicável. Esse é um princípio, aliás, que norteou o pendor de gênios altamente criativos ao longo da história, como o renascentista Leonardo da Vinci. Ele cravou sua digital na arquitetura, na ciência, na engenharia e nas artes embalado pelo motor da curiosidade, um ingrediente comprovadamente essencial no caminho da descoberta, presente em outras mentes efervescentes, como as do físico Albert Einstein e do próprio Jobs (veja no quadro abaixo).
Graças aos avanços científicos, foi possível mapear os impactos positivos do incessante exercício da inventividade, que pode ser cultivado por qualquer mortal. O permanente incentivo à busca de respostas nunca antes dadas esculpe pontes entre os neurônios, e elas vão se fortalecendo à medida que eles são postos a trabalhar. “A criatividade é uma habilidade superior, que faz surgir novas conexões entre diversas áreas da mente e contribui para a formação de redes neurais e de memória, com efeitos de longo prazo”, explica Mauro Muszkat, neuropediatra e professor da Unifesp. Um estudo seminal que investigou o processo de improvisação no cérebro da pianista venezuelana Gabriela Montero, famosa pelos dedilhados inesperados em obras clássicas, identificou ligações relacionadas a coordenação motora, audição e visão em nada menos que 22 regiões da mente — inclusive em repouso. São indícios de um cérebro inquieto típico de quem vive às voltas com altas doses de criatividade.
Não se trata, é natural, de uma capacidade que se ensina diretamente, como português ou matemática. Ela é estimulada e treinada através do chamado “pensamento divergente”, que consiste em abrir várias janelas na mente ao mesmo tempo para encarar um desafio. Em comparação à educação convencional, é como uma revolução. “A escola tal qual a conhecemos fomenta sobretudo o pensamento convergente, em que os alunos são motivados a buscar respostas únicas e incontestáveis, conforme determinam os livros didáticos”,afirma Solange Wechsler, professora de psicologia da PUC-Campinas. Os colégios mundo afora vêm sendo mais vagarosos do que requer o mercado na formação de um contingente criativo, mas vislumbram-se, nos próximos anos, bem-vindas iniciativas em prol de um ensino mais afinado com os ventos da modernidade.
Um bom exemplo vem da Irlanda. Determinado a figurar no topo do ranking das nações mais inovadoras, o país está revendo todo o currículo para incorporar o ângulo da “divergência” no dia a dia da sala de aula. Todos os estudantes têm ali a chance de aplicar o lado criativo em lições de culinária, moda, dança e oficinas literárias, que respondem por uma fração considerável do batente escolar. “Assim, naturalmente, as crianças vão desenvolvendo a capacidade de questionar e adotar abordagens imaginativas”, enfatiza a VEJA Mags Walsh, diretora do programa.
Apesar da complexidade do tema, as soluções que vêm sendo testadas pendem, em sua maioria, para a simplicidade. O método de dar gás à criatividade concebido pelos cientistas do Media Lab, o laboratório do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) que há décadas se dedica a refletir sobre inovação e educação, propõe que as escolas absorvam em todos os níveis o ambiente de mais iniciativa e menos cobrança tão presente no jardim da infância. “Nessa fase, as crianças criam à vontade e têm a liberdade de errar e aprender com os erros”, diz Leo Burd, pesquisador do MIT, que trabalha em uma parceria com a Fundação Lemann para levar o método a redes públicas brasileiras. Na escola Camino, em São Paulo, que vai até os anos finais do fundamental, os alunos se envolvem em projetos para resolver problemas concretos, com elo na realidade. “O professor é sobretudo um orientador, que guia crianças e adolescentes no mundo do saber”, diz Artur Slama, que exerce a função.
Mas ainda que figure entre os itens mais ambicionados deste século, a criatividade é muitas vezes relegada a segundo plano justo quando ela deveria ser mais alimentada — na infância. “Se alguém dissesse que alunos de 15 anos estão se saindo pior em matemática do que os de 10, logo se imaginaria que há algo errado na educação, mas raramente vemos essa reação quando o assunto é a criatividade”, alerta o físico Andreas Schleicher, diretor de educação da OCDE, o clube das nações mais desenvolvidas. Sinal dos novos tempos, a organização desenvolveu uma maneira de avaliá-la que, pela primeira vez, será incluída no PISA, a mais renomada medição global da qualidade do ensino. “Acredito que o novo PISA vai nortear mudanças decisivas no currículos escolares”, diz Ricardo Primi, consultor do Instituto Ayrton Senna.
Com base no ranking da criatividade da OCDE, o instituto está preparando um material para mestres interessados em tornar os conteúdos mais instigantes. O método, testado em pequena escala, estará disponível, até 2024, para redes públicas. No ensino particular, 30 000 alunos de oitenta escolas contam com uma plataforma digital para desenvolver as tão ventiladas habilidades socioemocionais, três delas relacionadas à abertura ao novo. “Criatividade é uma capacidade híbrida, que nasce a partir do desenvolvimento da curiosidade, da imaginação e da persistência em adquirir conhecimento ”, lembra o psiquiatra Celso Lopes, do grupo Semente, à frente do projeto. Desenvolver essas competências faz diferença, inclusive, na aprendizagem das matérias regulares: as crianças que passaram pelo programa tiveram, por ora, melhora de até 11% nas notas finais.
No curso da evolução, o Homo sapiens se sobrepôs às outras espécies porque aprendeu a andar em bandos e se mostrou mais resiliente a doenças, lesões e estresse — resultado, segundo um estudo recém-publicado na revista Nature, de uma explosão criativa ocorrida geneticamente nos humanos há 40 000 anos. Essencial para a sobrevivência no passado, a criatividade será cada vez mais determinante na pavimentação do nosso futuro.
Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799