Passei décadas dentro de um campo de futebol escondendo quem realmente sou. Só em 2022, durante uma entrevista a um podcast, decidi assumir minha homossexualidade publicamente, algo que nenhum ex-jogador havia feito no Brasil. Mas só me senti saindo do armário, de verdade, depois de ter sido fotografado ao lado do meu namorado, no pré-Carnaval de Salvador deste ano. A foto causou uma enorme repercussão na imprensa e nas redes sociais, o que me deixou muito assustado. Sempre fui muito discreto e nunca havia aparecido para as lentes dos fotógrafos e câmeras de TV ao lado de alguém com quem mantenho relações afetivas. Passei a refletir sobre os motivos desse desconforto e percebi quanto esse medo ainda está presente em mim. Mesmo sabendo que não estava fazendo nada de errado, sinto que enfrento um tabu, tamanho é o preconceito no meio em que atuo desde a infância.
Me descobri gay em um tempo em que isso não era aceito. Nasci na conservadora Porto Alegre e aprendi cedo que seria considerado um cidadão de segunda classe se assumisse essa condição. Aos 8 anos, entrei para a escolinha do Grêmio. Tinha um jeito mais afeminado e percebi que precisaria me esconder se quisesse crescer no esporte. Não havia ninguém com quem eu pudesse conversar e compartilhar minha aflição. Só esperava que, em algum momento, essa atração por pessoas do mesmo gênero simplesmente desaparecesse, mas claro que isso nunca aconteceu. Foram décadas de solidão, inserido em um ambiente que não tem nenhum pudor em se demonstrar machista e cheio de preconceitos. Ao mesmo tempo, não queria abrir mão do meu sonho de ser goleiro. Morria de medo de ser descoberto. Só fui ter coragem para me relacionar com outro homem depois dos 21 anos. Escondido, evidentemente.
Não tenho dúvidas de que minha carreira seria condenada se meu segredo viesse à tona. Aos 20 anos, eu já era goleiro titular do Grêmio. Comecei a me tornar conhecido, um ídolo, de algum modo. A fama só fez a pressão aumentar. Em diversos momentos, entrei em depressão e pensei em desistir do futebol. Por mais que tentasse preservar minha intimidade, as fofocas corriam soltas pela cidade. Nunca apareci rodeado por mulheres, nos bares e casas noturnas, nem ao lado de namoradas, como costumam fazer os jogadores héteros. Meus próprios companheiros de equipe começaram a desconfiar de mim e a soltar piadinhas no vestiário. Já nos gramados, precisei de muita inteligência emocional para lidar com comentários de adversários e gritos homofóbicos da torcida, algo que ainda é totalmente naturalizado e corriqueiro nos estádios. A solução foi manter a atenção e me concentrar em obter o melhor desempenho entre todos na minha função. Se fosse bem-sucedido, talvez não houvesse margem para a discriminação.
É claro que há muitos homens gays no futebol, mas isso é ignorado. Namoradas e até mulheres de fachada são mais comuns do que se imagina. Eu realmente entendo quem recorre a esse teatro. Não querem se tornar o centro das atenções, nem ser prejudicados por isso. Contar minha história é uma forma de inspirar meninos gays que pretendem ser jogadores a ter coragem de fazer o mesmo. Sinto que posso acabar com uma série de estereótipos, como o de que homossexuais não têm talento com a bola. Fui surpreendentemente acolhido nessa missão. No Bahia, clube do qual sou presidente, não ouvi nenhum comentário negativo ou piada. É um clube superconsciente, que faz ações afirmativas junto a sua torcida. Deixar de encenar um personagem depois de tanto tempo foi libertador. Doa a quem doer, este é o Emerson de verdade, que nunca mais vai ter de se esconder.
Emerson Ferretti em depoimento dado a Duda Monteiro de Barros
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882