A moda é conhecida por ser um retrato vivo do tempo. As roupas, os calçados e os acessórios quase sempre são representações dos desejos de populações inteiras ou de grupos distintos, mas sempre revelando pensamentos muito próprios de sua era. Essa é a principal explicação para a incrível tomada do palco fashion neste momento pela inspiração do balé, a arte que exala leveza. Em meio a guerras, Covid-19, varíola dos macacos e outras desgraças, transportar-se ludicamente por meio de um elemento do figurino para o ambiente de sonho dos passos ritmados, do pas de deux, dos giros no ar e do corpo equilibrado na ponta dos pés é pausa atraente e bem-vinda.
O encantamento pela figura dos bailarinos está expresso em coleções de primavera-verão 2023 apresentadas por algumas das casas tradicionais da alta-costura, como Dior e Chanel, e pelas mais novatas. A italiana Miu Miu e a grife da irlandesa Simone Rocha, por exemplo, mostraram criações repletas de referências aos corpetes que destacam as curvas da silhueta, às sapatilhas de ponta e, especialmente, às saias tutu. Em geral feitas de tule ou renda, são elas em boa medida as responsáveis pelo espetáculo visual proporcionado a partir dos movimentos delicados e precisos das dançarinas. Os modelos da britânica Molly Goddard, ao contrário, são mais literais. Vestidos e saias terminam em sobreposições esvoaçantes, como as que encantaram os espectadores que viram pela primeira vez uma bailarina vestida comme il faut. O ano era 1832 e a artista pioneira foi Marie Taglioni, uma das maiores de todos os tempos. Depois de sua apresentação, seu figurino totalmente em sintonia com o romantismo que pautava as artes plásticas, a música e a literatura se tornou o padrão de elegância nos palcos.
O curioso é que, desde então, de tempos em tempos o balé vira a inspiração para a moda, e vice-versa. Coco Chanel, a estilista francesa que fundou a grife de mesmo nome, desenhou vestidos de tule nos anos 1930 após se apaixonar pelas roupas dos bailarinos. Cerca de trinta anos depois, lá estavam as sapatilhas nos pés de mulheres como Jacqueline Kennedy, símbolo de refinamento na década de 60. Em 2013, as mãos se inverteram. A inglesa Vivienne Westwood, a criadora das modas punk e new wave dos anos 1980, assinou o figurino dos integrantes do Balé de Viena, na Áustria, para a apresentação que fizeram nas festas do final daquele ano. Podia-se ver em várias peças os toques irreverentes de Vivienne, como estampa xadrez e golas um tanto rebuscados. Mas a essência da vestimenta do balé, caracterizada pela roupa fluida que dá liberdade aos movimentos do corpo, estava lá.
Na versão 2022-2023, a dança da moda mantém todos esses elementos, mas vai um pouco além do que foi visto até agora. No look exibido recentemente pela atriz e cantora Jennifer Lopez, com direito a sapatilhas, o vestido ganhou ares mais esportivos com a adição de punhos marcados. Além disso, a inspiração finalmente chegou ao guarda-roupa masculino, representada em macacões colados ao corpo, como o usado pelo cantor e ator Harry Styles em uma das apresentações de sua turnê mundial. Não era sem tempo. A beleza do balé e tudo o que ela estimula não têm gênero. Vaslav Nijinsky, Rudolf Nureyev e Mikhail Baryshnikov, para citar alguns dos mais famosos bailarinos do mundo, já deixaram isso claro, em piruetas que não cessam. O bem-vestir e os passos bonitos andam juntos.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804