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Pesquisa americana revela o poder de uma boa fofoca

Malvisto por seus efeitos deletérios, o ato de falar de terceiros, quando bem-intencionado, pode ajudar o boquirroto em vários escaninhos da vida

Por Mafê Firpo Atualizado em 4 jun 2024, 10h22 - Publicado em 30 jun 2023, 06h00
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  • Existem muitos níveis de fofoca, um esporte universal que a espécie humana vem praticando desde os primórdios. Uma parcela consiste em maledicências, cuja mira é alguém de quem não se gosta e a quem se quer atacar. Não raro, os mexericos do mal vêm carregados de mentiras — as famigeradas fake news — e revelam uma face lamentável dos indivíduos que as espalham. Mas há outros prismas que dão ao assunto a complexidade que ele merece. Em seu best-seller Sapiens: Uma Breve História sobre a Humanidade, o historiador israelense Yuval Noah Harari sustenta que o ato de fofocar não apenas ajudou a sedimentar a linguagem cerca de 70 000 anos atrás, período em que se desenrolou a chamada revolução cognitiva, como foi vital para a própria sobrevivência em tempos em que os riscos brotavam por toda a parte. Nesse inóspito ambiente, o fluxo de informações entre os membros de um bando era essencial para mapear os integrantes confiáveis e conhecer os trapaceiros, criando assim sociedades mais coesas e prontas para lutar em grupo pela existência.

    Agora, uma vasta pesquisa lança luz sobre os efeitos da fofoca nos cidadãos, que podem se beneficiar em alguns escaninhos da vida ao cultivar o hábito de chegar ao ouvido de alguém tecendo considerações sobre os outros. O estudo, conduzido pela Universidade Estadual de Washington e recém-publicado no Journal of Evolution and Human Behavior, se concentrou nas interações em que nenhum envolvido desabonava a pessoa de quem falava — eram, portanto, “mexericos do bem”, como definiram. Nessa seara, os boquirrotos viam crescer as chances de ganhos palpáveis: recebiam mais informações, que podiam se converter em melhorias no trabalho (promoção, aumento, alargamento da rede de contatos), e aprofundavam relacionamentos na esfera privada. “Ao ressaltar pontos positivos sobre uma terceira pessoa, o autor da fofoca passa a ser bem-visto por exibir traços de honestidade e boa índole, e pode ser premiado por isso, conforme constatamos”, disse a VEJA a antropóloga Nichole Hess, coordenadora do trabalho que analisou amostras nos Estados Unidos, na Índia e em países africanos. Em todos eles, a conclusão foi a mesma.

    Outro aspecto positivo em torno dos “fofoqueiros do bem” é que eles, muitas vezes, acabam por firmar laços sólidos com aqueles com quem dividem inconfidências sobre terceiros. “A fofoca produz elos, uma vez que se estabelece uma cumplicidade com quem você fala”, afirma o antropólogo Bernardo Conde, da PUC-Rio. E é nesse terreno, reforça a pesquisa, que pode germinar um ambiente de cooperação favorável. No mundo real, isso se traduz nas mais diversas e corriqueiras situações. Estagiário em uma firma de advocacia do Recife, Diego Luiz Queiroz, 19 anos, descobriu que um importante processo não andava porque um funcionário havia se enredado na burocracia e não conseguia desengavetá-lo. Diego fez então a informação chegar a sua superiora, explicando as dificuldades do colega, sem criticá-­lo. Surtiu efeito, e o caso começou a caminhar com a ajuda da própria chefe, com quem agora mantém linha direta. “Não prejudiquei ninguém, ao contrário, e o episódio ajudou a me aproximar dela”, relata Diego.

    arte fofoca

    Uma pesquisa feita por cientistas holandeses, publicada pela revista Nature, reforça que a fofoca funciona como “uma ferramenta barata de cooperação”, mas faz a ressalva: só vale quando ela não é movida pela vontade de prejudicar o próximo. Se o mexerico vem cercado de más intenções, o impacto é justamente inverso, manchando a reputação do fofoqueiro. Atribui-se a Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise, a frase “Quando Pedro me fala de Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo”. Para ele, falar de alguém pelas costas seria uma forma de satisfazer impulsos agressivos represados e de trazer alívio temporário a tensões internas. “Para a psicanálise, a fofoca é algo negativo porque tende a diminuir o próximo, projetando sobre ele questões mal resolvidas de quem a divulga”, afirma a psicóloga Joselene Alvim, da Unesp. Para os que estão na mira, as consequências podem ser duradouras. “Por muitos anos, fui alvo de fofoca na escola e perdi durante um bom tempo a confiança nas pessoas”, conta o engenheiro Bernardo Herzog, 24 anos.

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    Especialistas explicam que espalhar segredos e fazer intrigas sobre terceiros envolve uma satisfação pessoal que remete à própria constituição humana. Daí o alerta: “Quanto mais seduzidos pela história que disseminam, mais seus narradores precisam indignar-se moralmente contra ela”, diz o professor de filosofia Malcom Guimarães, da Universidade Federal da Bahia. Embora a atual pesquisa de Washington se volte para as “fofocas do bem”, há evidências de que também maledicências têm potencial de unir o autor e o receptor do enredo propagado, caso estejam afinados com o tema em questão. Na era moderna, esse campo foi se tornando cada vez mais perigoso, dada a envergadura que a coisa pode tomar. Nos anos 1950, o sociólogo Herbert Marcuse, da Escola de Frankfurt, já alertava que a cultura de massa exercia influência direta na disseminação de fofocas — bem antes do mundo ultraconectado pós-internet, tão afeito a mexericos em larga escala.

    A história é repleta de grandes fofocas, algumas naturalmente alimentadas por fake news, que contribuíram inclusive para mudar o curso dos acontecimentos. Em 1784, espalhou-se pela França que a controversa rainha Maria Antonieta havia adquirido um colar de nada menos que 674 diamantes. Para piorar, ele havia misteriosamente desaparecido. O caso circulou de súdito em súdito num período em que a população andava empobrecida e faminta, e o escândalo da joia, hoje avaliada em cerca de 150 milhões de reais, ajudou a agravar a insatisfação com a realeza, plantando mais uma semente no que acabaria por resultar na Revolução Francesa, em 1789. Lá atrás, na Grécia Antiga, Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), segundo se conta, afirmava que, para que uma fofoca não destruísse a reputação alheia, precisava sobreviver a três peneiras: verdade, bondade e utilidade. Palavras de um sábio filósofo.

    Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848

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