Quem tem medo do pai de Xica Manicongo?
A discussão da paternidade da primeira travesti do Brasil, figura central no desfile da escola de samba Tuiuti

Até 1998, ninguém nunca tinha ouvido falar de Xica Manicongo. Hoje, tem mais de 1 milhão de resultados no Google. Fui eu, Luiz Mott, professor e antropólogo da UFBA, fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB), quem descobriu e tirou do armário da Inquisição na Torre do Tombo de Lisboa o feiticeiro Francisco Manicongo. Foi denunciado na 1ª Visitação do Santo Ofício na Bahia (1591), de ser “somítigo paciente”, isto é, gay passivo, e usar uma faixa na cintura, aberta na frente, que o identificava como membro de uma “quadrilha de feiticeiros-quimbanda do Congo Angola que fazem o papel de fêmea”. Há 27 anos, portanto, tive o insight de identificá-lo como “o primeiro travesti do Brasil e homossexual corajoso”. Só em 2000 que o GGB introduziu no português o artigo feminino para se referir às pessoas trans, que, até então, se consideravam homossexuais.
De lá para cá, publiquei uma dezena de artigos aqui e no exterior sobre essa pioneira quimbanda afro-baiana, contraventora na sua vivência religiosa e heterodoxa na sua orientação sexual e performance de gênero. Somente em 2010 a travesti carioca Majori Marchi, de saudosa memória, líder da Associação de Travestis do Rio de Janeiro, leitora de meus artigos, onde tomou conhecimento do nosso Quimbanda, decidiu então rebatizá-lo como Xica Manicongo, uma apropriação inteligente do lugar de fala, que aprovei e considero politicamente correta. Continuo me referindo à nosso quimbanda ora como Xica, ora como Francisco, considerando que ele declarou duas vezes, na diminuta documentação onde é citado, que já não usava a tal faixa de mulher e sim “o vestido de homem” dado por seu proprietário. Hoje, Xica\Francisco seria qualificada, na infindável sopa de letrinhas LGBT+, como gênero mutante ou identidade fluída.
Apesar de ter dado à luz à nossa primeira travesti pátria, o pai assumido e incontornável de Xica Manicongo tem sido vítima de injusto cancelamento e plágio. Tenho meu nome sistematicamente omitido em muitas reportagens e estórias a ela dedicados, fruto de picuinhas e fake news por parte de certas lideranças trans que não suportam essa realidade: um gay acadêmico e militante destemido, decano no movimento homossexual brasileiro, foi quem deu vida à essa trans matriarca ancestral. Eis o fio de Ariadne: há mais de 30 anos fui declarado “persona non grata” pela Astral, a extinta Associação de Travestis e Liberados (RJ), que me proibiu de escrever sobre o universo trans. Censuravam minhas pesquisas e publicações por meio de moções tortas, aprovadas com assinaturas falsas, como comprovou a primeira advogada travesti da OAB, a saudosa Janaina Dutra. Desde então, sofro esse quixotesco bullying, apesar de minha incontornável contribuição à cidadania de Travestis e Transexuais: há 45 anos o GGB divulga anualmente minha pesquisa com a lista dos LGBT assassinados, destacando sempre que são as trans as principais vítimas deste “bichicídio”; fui eu quem introduziu no país o uso de artigo feminino para as trans; escrevi pioneiros livretos sobre redução de danos no uso do silicone e cartilha de prevenção da aids para travestis em linguagem pajubá; fundei a Atras, Associação de Travestis e Transformistas de Salvador, e há três décadas, ressuscitei do anonimato dos arquivos a mais brilhante estrela do panteão trans, enredo da Escola de Samba Tuiuti, “Quem tem medo de Xica Manicongo”, 10º lugar no Sambódromo em 2025.
A Tuiuti, que há meses vem contando com a assessoria da Associação Nacional de Travestis, omitiu meu nome como descobridor de Xica Manicongo e não me convidando para desfilar junto com as 18 trans homenageadas. É injustiça flagrante que precisaria ser reparada. Consultem-se nossas duas travestis acadêmicas que já escreveram sobre Xica, Dra. Jaqueline Gomes de Jesus e Dra. Amara Moira, sobre a veracidade dessa narrativa. Cidadania – e ciência! – não têm roupa certa.
* Luiz Mott, 78 anos, é antropólogo da UFBA e decano o Movimento Homossexual Brasileiro