Revolução geométrica: os 60 anos do celebrado vestido Mondrian, de Yves Saint Laurent
Trata-se de um passeio pelo casamento da arte com a moda, em movimento que nunca parou

Help! Naquele ano de 1965, os Beatles estouraram nas paradas de sucesso com o quinto álbum de estúdio, condecorados como cavalheiros pela rainha Elizabeth. Os Estados Unidos do presidente Lyndon Johnson entravam com tudo no Vietnã, e os humores da juventude passaram a caminhar debaixo de um slogan: “Faça amor, não faça guerra”. No Brasil, as eleições presidenciais marcadas para outubro foram canceladas, no prólogo do horror imposto pela ditadura militar a partir de 1968. O mundo parecia pedir socorro. E então, em meio ao caos e à angústia, um estilista francês de apenas 29 anos, Yves Saint Laurent (1936-2008), o YSL, cuja timidez transbordava pelo corpo magro, escondida pelos óculos de lentes grossas, decidiu mostrar que dava, sim, para colorir a imaginação.
Provocado por uma influente jornalista — “Cadê sua mulher do futuro?” —, YSL passou a noite em claro, trancado em sua biblioteca, entre taças de vinho e cigarros Gitanes. Angustiado, porque apenas a novidade lhe interessava, teve uma epifania ao pegar nas mãos um livro, que ganhara de Natal da mãe, em torno da vida e obra do pintor modernista holandês Piet Mondrian (1872-1944). A capa ia direto ao ponto, com as linhas geométricas e cores vivas da mais famosa tela do artista, Composição II em Vermelho, Azul e Amarelo. “Isso é completamente moderno”, pensou o visionário costureiro, em exclamação depois detalhada em entrevistas. Nascia um clássico imediato, talhado para desconstruir o passado, tudo aquilo que viera antes dele: o vestido Mondrian, a simplicidade primária alinhavada pela alta-costura.

Aquele vestido, hoje sessentão, parece ter sido imaginado ontem. Não envelhece. Copiado à exaustão, nunca deixou de ganhar reinterpretações. É ícone incontornável. Emoldurou corpos de estrelas de ontem, como Catherine Deneuve, e de hoje, a exemplo de Katy Perry. Virou boneca Barbie. Marco de um tempo, atravessou épocas. O próprio Mondrian, a quem YSL não conheceu pessoalmente, é óbvio, já intuíra que seus traços poderiam um dia subir às passarelas, andar pelas ruas: “A moda reflete com precisão um período histórico e é também uma das formas mais diretas de expressão visual na cultura humana”.
O trabalho de YSL, ressalve-se, antecedeu a criação, como sempre. Ele bebeu da minissaia de Mary Quant, de 1962. Entusiasmara-se com o encurtamento das peças de Pierre Cardin e Paco Rabanne. Demonstrou entusiasmo, e um tantinho de inveja, é claro, com os desenhos futuristas de André Courrèges. Do liquidificador de todos eles, somados a Mondrian, deu-se a virada — e adeus à caretice dos tempos de Christian Dior, ali onde ele aprendeu quase tudo, só para poder tomar uma outra estrada. “Estava preso em uma forma tradicional de elegância, e Courrèges me tirou dela, sua coleção me energizou”, disse YSL.

Mas qual era, afinal, a mulher do futuro que ele propunha ao transformar uma obra de arte em roupa? A jovialidade, os tons, mas, sobretudo, a íntima conversa entre plataformas, telas e panos, pincéis e tesouras. Foi um espanto, e ainda hoje há ecos daquele susto. O desfile de 6 de agosto de 1965, exatos vinte anos depois da bomba de Hiroshima, levou tudo aos ares. “Mondrian libertou YSL como ser humano e como criador”, diz Brunno Almeida Maia, pesquisador de moda da USP. Para ele, não havia sentido em apartar qualquer tipo de atividade artística, a moda inclusive, da existência cotidiana. Nessa postura, era influenciado por um bom amigo, o papa da pop art, o americano de cabelos platinados Andy Warhol, que fazia de latas de sopa obras-primas. Warhol, aliás, ia a Paris com frequência e, em uma das jornadas, tratou de registrar a intimidade de YSL e seu companheiro, o empresário Pierre Bergé, em fotografias que, por coincidência, estão sendo leiloadas agora pela Sotheby’s parisiense. Não havia, realmente, escaninhos separados de arte e vida.
Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930