Revolução na pele: exposição em Londres ilumina a aventura histórica do biquíni
Traje é termômetro dos humores da sociedade, em permanentes avanços e recuos comportamentais

Está nas enciclopédias. A gloriosa carreira internacional da palavra biquíni, na grafia em inglês, começou em 1946, quando os Estados Unidos iniciaram uma série de testes nucleares detonando uma bomba embaixo d’água no atol de Bikini, pertencente às ilhas Marshall, no Pacífico. Chamado de Pikkini na língua local (supostamente de pik, “superfície”, e ni, “coco”), o nome do atol ganhou manchetes mundo afora. Mas explodiu mesmo, em estardalhaço atômico, quando o designer francês Louis Réard registrou a palavra bikini como marca de sua versão especialmente exígua (e com lacinhos) do maiô feminino de duas peças. Tais tipos de traje vinham encolhendo cada vez mais na Riviera, mas o negócio era tão diminuto que todas as modelos procuradas se recusaram a vesti-lo na festa de lançamento. Foi preciso contratar uma stripper de casas noturnas.
No ano seguinte, em tom moralista, o jornal Le Monde atestava o valor metafórico da nova acepção, “palavra tão devastadora quanto uma explosão, correspondente à aniquilação da superfície coberta pelo traje e à minimização extrema da vergonha”. A ditadura do espanhol Francisco Franco, que perdurou de 1938 a 1973, considerava o biquíni uma “ameaça”. O breve presidente brasileiro Jânio Quadros, em 1960, tratou de vetá-lo, de mãos dadas com o jingle de campanha: “a certeza do Brasil moralizado”.

As reações mercuriais e conservadoras apenas confirmaram, ao longo do tempo, o poder de influência do que se convencionaria chamar de “moda praia”, e o resto é história. Uma exposição no Design Museum, em Londres, a partir de março e até agosto, é uma lembrança do susto provocado pelas diminutas porções de pano no cotidiano banal de água salgada e areia, e inclusive nas competições entre raias. Splash! A Century of Swimming and Style (Splash! Um Século de Natação e Estilo) ilumina um capítulo costurado de limites ultrapassados, de avanços e recuos, como se o vestuário ajudasse a contar a história da civilização que decidiu banhar-se ao sol. Faz frio em Londres e é insólito mergulhar em aventura tão quente. Soa deslocado, é como um mundo irreal, mas é fascinante.
Não há muito espaço, na mostra, para as criações brasileiras, mas é inevitável apontá-las. Em 1962, houve espanto com a beleza veranil de Helô Pinheiro, a “garota de Ipanema” de Tom e Vinicius, cuja imagem inspiraria o mundo, embebida de bossa nova. Mas, convenhamos, nem mesmo para aqueles anos ela parecia estar despida, ao contrário. Havia algo de pudico, no avesso do entusiasmo com Ursula Andress a sair do mar em 007 contra o Satânico Dr. No. Quando os tabus deram um refresco — em eterno retorno, dada as marés conservadoras que lambem as sociedades como ondas no mar — a criatividade tratou de estabelecer novos patamares de provocação.

Nos anos 1980, o estilista Cidinho Pereira, dono da marca Bumbum Ipanema, que ainda existe, lançou o asa-delta, inspirado em um modelo cavado de alças altas visto em Ibiza no ano longínquo de 1984. “Todas as mulheres faziam topless. Prestei atenção nas calcinhas e percebi que o modelo tradicional deixava o bumbum quadrado. Pensei: o que é redondo precisa de uma embalagem redonda”, explicou ele a VEJA quando a peça celebrou quatro décadas. Monique Evans trataria de dar vida ao corte. A modelo Magda Cotrofe iria ainda mais longe, com o fio-dental, no programa de TV de Jô Soares.
Dali para o topless foi um passo — e dá-lhe retrocesso alimentado por quem se incomodou e exigiu compostura. Assim caminha a humanidade, e os biquínis, como revela a exposição londrina, tratam de pontuá-la, mais do que qualquer outra delicadeza feminina. Eles são a um só tempo termômetro e manifesto. Medem a temperatura do que vale ou do que não vale, e, em momentos de revolta contra a caretice, reagiram, ficando mais ousados. Quem há de esquecer a gravidez de Leila Diniz em 1971, barrigão à mostra? O criador, Louis Réard, nunca escondeu sua intenção: “Um biquíni não é um biquíni se não puder passar por dentro de uma aliança de casamento”. É a beleza do mínimo que é o máximo.
Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2025, edição nº 2931