‘Sonho que todos consigam chegar onde os livros estão’, diz Bel Santos Mayer
Em entrevista a Veja, coordenadora do projeto que venceu o Prêmio Jabuti de fomento à leitura fala sobre sua história com os livros

Em 2008, um estudo realizado em São Paulo mostrou que, enquanto Pinheiros era a melhor região da cidade para morar, Parelheiros estava no outro pólo deste espectro: embora fosse a maior região e com a maior reserva vegetal, era a que tinha menos acesso a trabalho, lazer, cultura e serviços. Foi ao notar esse dado que nasceu o projeto vencedor do Prêmio Jabuti de fomento à leitura de 2024.
O Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC) ficava localizado em Pinheiros e já tinha um longo histórico de trabalho com os direitos humanos. Ao perceber os dados de desigualdade, contudo, decidiram aplicar toda essa expertise em um único local. “O melhor lugar tem uma dívida com o pior lugar”, diziam.
Eles foram até a comunidade, tiveram vários encontros com os moradores e, por demanda deles, começaram a trabalhar próximos aos jovens. O primeiro projeto: reescrever a carta dos direitos humanos até que ficasse numa linguagem compreensível para todos os moradores da região.
Daí, então, decidiram se dedicar a um dos 30 tópicos da carta: o direito à cultura. E foi abrindo uma biblioteca comunitária, laureada com o prêmio conhecido como o Oscar da literatura brasileira, que eles conseguiram colocar esse projeto em prática. A educadora social Bel Santos Mayer, coordenadora do IBEAC ao lado de Vera Lion, foi uma das mentes por trás dessa conquista.
Aos 57 anos, ela é filha de pais nordestinos e fez da literatura uma das suas principais ferramentas de transformação social. Em entrevista a Veja, que pode ser lida a seguir, Santos Mayer falou sobre a sua história com os livros, a importância das bibliotecas comunitárias e a relação com Parelheiros.

Como surge a biblioteca comunitária em Parelheiros? Eu, o Paulo Lima e Valdênia Paulino éramos empreendedores sociais da Ashoka e, naquela época, a rede dava 3 mil reais para quem quisesse realizar trabalhos conjuntos. Eu estava começando a história com Parelheiros e os chamei para participar desse trabalho. Fizemos um álbum seriado para espalhar pela comunidade, mas notamos que lá não tinha nenhum espaço cultural. Não tinha lugar para os adolescentes conhecerem outras pessoas, além da igreja. Então nós propusemos começar uma biblioteca, que era algo que já sabíamos fazer.
E funcionou? A Flávia Kolchraiber, que participava dos nossos projetos em Parelheiros, fazia a gestão de algumas unidades de saúde e ela falou sobre uma sala livre em uma dessas UBS. Instalamos a biblioteca lá. O projeto se chamava pílulas de leitura porque oferecíamos literatura infantil e poesia para quem estava na sala de espera e os médicos receitaram livros para os pacientes.
E a biblioteca continuou lá? Por estar perto das pessoas, ouvimos que não tinha dentista naquela comunidade e eles nos pediam para ajudar com isso. Quando o dentista chegou, ficou com a sala e nós tivemos que sair. A comunidade encontrou um outro lugar, que era a sala do coveiro, no cemitério. Mas ai começa outro movimento. Como é que a gente fala de vida em um lugar de morte? Como é que a gente leva jovens pretos, que são as principais vítimas de execução sumária, para falar de cultura dentro de um cemitério? Por incrível que pareça isso deu certo e nos fortaleceu muito. Da turma que participou desse projeto quase todos fizeram faculdade e muitos, agora, estão começando a pós-graduação.
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Como é que você se sente vendo esse projeto que começou há mais de dez anos recebendo um Jabuti? Já tínhamos sido finalista do Jabuti com a Rede LiteraSampa, que foi finalista, mas perdeu para o Itaú Social. O Jabuti é um baita reconhecimento, em especial num período em que, pela primeira vez, o número de não leitores superou o de leitores no país. Ficamos tão felizes porque em Parelheiros ocorre o oposto. Desde 2015, o Brasil fechou 1500 bibliotecas, enquanto lá, nós abrimos quatro. O país fecha a biblioteca, a gente abre; o país perde leitor, a gente aumenta. Provamos que ler juntos é a melhor tecnologia para formar novos leitores.

Qual é o seu sonho para Parelheiros? Bem que eu queria ser como Luther King e ter apenas um sonho. Tenho muitos. Sonho que Parelheiros seja a cidade mais premiada pela promoção da leitura. Sonho que todo mundo consiga chegar a pé onde os livros estão. Sonho que Parelheiros consiga desenvolver uma área de proteção ambiental. Que os moradores consigam defender o seu território. Que Parelheiros possa ser o melhor lugar para se nascer e viver.
Dando uns passos para trás, como começou a sua relação com a leitura? Por muito tempo, vivi em uma casa sem livros e eu achava que isso era suficiente para responder essa questão, mas ouvindo uma ocupação da Leda Maria Martins no Itaú Cultural tive contato com o conceito de oralitura, que fala sobre a literatura que passa pelos nossos corpos. Eu vivi em uma casa sem livros, mas não vivi em uma casa sem histórias. Minha mãe, meu pai e meus avós nos preencheram delas.
E tinha acesso a bibliotecas? Eu estudei em escola pública minha vida toda e, nessa escola onde eu fiz o ensino fundamental, a biblioteca não fazia parte da formação. Os alunos só ficavam nas bibliotecas quando estavam de castigo.
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E o que te levou a se aproximar da leitura? O bairro em que cresci era cercado por situações de violência. Era uma cidade dormitório em que ninguém dormia. Isso me levou para a educação. Queria ensinar as pessoas a ler e fui trabalhar com criança e adolescente, principalmente com jovens que iam para a Febem. Mas me aproximo mesmo da literatura quando entro para o IBEAC, em 1997. Eles queriam fazer um projeto junto com os jovens e eu fiz a ponte com o movimento hip-hop. Foi assim que, junto com a Vera Lion e com o Núcleo Cultural Força Ativa, abrimos a primeira biblioteca comunitária em cidade Tiradentes. Era uma biblioteca mais política que literária.
Qual a relação entre os movimentos hip-hop e a literatura? Minha primeira conexão com o movimento hip-hop foi dentro de um centro de defesa dos direitos da criança e do adolescente, o CEDECA. Nessa época, tanto o Mano Brown quanto o Z’África e o Rappin’ Hood visitavam as unidades da Febem para fazer conversas com os adolescentes. Na gestão da Luiza Erundina, quando o Paulo Freire era secretário de Educação, aconteceu um projeto que passou a ser chamado de Rap pensando a educação, na zona leste. Nessa época pensamos que não era possível os alunos fracassarem tanto na escola se eles sabiam, de cor, letras como Sobrevivendo no Inferno. Nós passamos, então, a utilizar as sextas para discutir as letras do Rap com os alunos e, no final, tinha um show com um dos grupos. Foi um movimento muito importante.
A senhora comentou que esta primeira biblioteca era mais política do que literária. Por que? O Núcleo Cultural Força Ativa é um núcleo de esquerda. Quase todos eles usam comunista no nome. Quando os conheci, eles estavam estudando O Capital, mas nós chegamos com uma formação ligada aos direitos humanos. Eles tinham um respeito grande por mim, mas tinham também muita desconfiança. Eles falavam que direitos humanos é coisa de burguês. Nutrimos uma parceria que durou 11 anos e, hoje, eles assumem a defesa do direito humano à literatura como uma das suas práticas. É uma biblioteca com um acervo sociológico bastante consistente.
Como vocês conseguiram convencer esses jovens de que direitos humanos também era coisa deles? Essa foi uma coisa muito importante e só conseguimos por meio do respeito absoluto. Não chegamos lá com uma doutrina, chegamos para trocar. A gente não podia perder a chance de compartilhar algo que a sociedade construiu e que poderia estar a nosso favor. Dessa relação de respeito, de escuta, de construção de consensos, as mudanças se deram.

As bibliotecas comunitárias sempre tem uma orientação política? Eu sempre trabalho com essa tríade. As bibliotecas comunitárias têm uma ação que é poética, política e educativa. Como principio, esses três são inseparáveis, mas algumas vão fazer a escolha de se dedicar mais a uma do que a outra. Nós, em Parelheiros, decidimos nos dedicar, principalmente, à obra ficcional, à obra literária. Acreditamos no poder que a ficção tem de incidir nos sonhos, no poder que a ficção tem de construir repertórios inimaginados, no poder que as personagens complexas têm de contribuir para que a gente possa romper com os destinos que nos são impostos.
A dona Sueli Carneiro tem uma frase muito evocada em que ela diz que “entre esquerda e direita, continuo sendo negra”. Isso se relaciona muito com a percepção desses jovens. Como a senhora avalia essa proximidade, hoje, entre a esquerda acadêmica e os movimentos periféricos? Acho que a gente foi se perdendo um pouco no caminho. Eu sou uma mulher periférica que agradece muito ao que a esquerda fez, porque ela me deu a possibilidade de desvelar um país de desigualdades sem achar que era culpa dos meus antepassados escravizados. Tenho muito a agradecer por isso. Mas acho que no decorrer do tempo nós nos iludimos, achando que as coisas já estavam conquistadas. Isso não existe. É preciso voltar para casa, como diz Toni Morrison. IBEAC, por exemplo, é uma organização que nunca abandonou a construção de base, a gente nunca ficou distante da comunidade. O nosso pé está sempre cheio de barro. E a universidade está percebendo a importância disso. Ela não é mais a mesma. Antes, os pesquisadores saiam para estudar os outros. Agora os outros estão dentro da Universidade e isso significa que as coisas precisam mudar.