Viver com dignidade: urbanismo social ganha espaço no Brasil
Tendência inspirada na vitoriosa transformação de Medellín já colhe ótimos resultados, no avesso da desumanidade imposta pela pobreza e pelo crime
É a história conhecida, mas sempre educativa, de uma extraordinária recuperação, a de uma cidade engolida pelo crime, de volta à vida. Entre 1980 e 1990, Medellín, na Colômbia, teve o vergonhoso título de ser a aglomeração urbana mais violenta do mundo. Havia, naquele tempo, no auge do horror imposto pelo reinado do traficante Pablo Escobar, 380 homicídios por 100 000 habitantes, índice inaceitável — uma taxa de dez assassinatos a cada 100 000 pessoas já é classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como de “violência pandêmica”. Porém, três décadas depois, o cotidiano dos 2,5 milhões de moradores é outro. O caos deu lugar a praças, museus e ciclovias. Bebe-se a chicha de maíz, a cerveja de milho, com a tranquilidade que parecia perdida.
O que fez mudar o curso de Medellín, a ponto de servir como exemplo global? A resposta, em duas palavras: o urbanismo social, o conjunto de decisões (veja no quadro) lideradas pela iniciativa pública — e o apoio da iniciativa privada — capaz de promover transformações reais em comunidades pobres regidas pelo medo do dia seguinte. A iniciativa colombiana (houve redução de espetaculares 94% nos índices de violência entre 1993 e 2021 no conjunto do país) inspirou outros cantos, se espalhou pela América Latina, com destaque para o México, e chegou ao Brasil, dono de uma triste marca, sede de dez dos cinquenta municípios mais agressivos do planeta. O acúmulo de sucessos, apesar de alguns deslizes, autoriza, agora, uma constatação: pequenas decisões, alimentadas pela vontade política, fazem diferença.
Não é pouca coisa. O urbanismo social funciona, é uma ferramenta de inclusão ante tanta desigualdade e injustiça. As experiências se multiplicam — espelhadas em Medellín —, como acontece em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e em algumas cidades do Pará. Dado o interesse pela ideia civilizatória, o Insper, reputada instituição de ensino superior de São Paulo, por meio do Laboratório Arq.Futuro de Cidades, tem um curso de pós-graduação dedicado ao tema. O detalhe, crucial: não é preciso ter diploma superior para frequentá-lo. “ Fizemos isso para atrair líderes de territórios vulneráveis, que nem sempre passam por uma faculdade”, diz Tomas Alvim, coordenador-geral do Arq.Futuro. “O segredo, por assim dizer, está nos laços de confiança entre a comunidade e os governos.”
A estrada inaugurada por Medellín ainda está em seus primeiros quilômetros e há muito ainda a pavimentar. Mas os casos vitoriosos podem ser celebrados. “Medellín nos mostrou como fazer políticas sociais”, diz Murilo Cavalcanti, secretário de Segurança Cidadã da capital pernambucana, que desde 2006 pesquisa as saídas para a violência urbana. Ele viajou pela primeira vez à cidade colombiana para pesquisar programas de segurança que pudessem ser adaptados à realidade do Recife. Voltou convencido de que o projeto poderia ser adaptado às nuances de Pernambuco. O fruto inaugural, em 2016, que não para de ser melhorado e render filhotes, foi o Centro Comunitário da Paz (Compaz), que leva o nome de Governador Eduardo Campos, no Alto Santa Terezinha, bairro da região norte da capital. A construção moderna, ampla, com piscina olímpica, quadras poliesportivas e biblioteca, abriga salas que oferecem cursos de robótica, idiomas e empreendedorismo. O prédio ainda agrupa serviços como mediação de conflitos, defesa do consumidor e assistência social. O entorno da sede recebeu calçadas mais largas, iluminação e asfalto novo. “O governo construiu um equipamento de primeiro mundo em uma região pobre e violenta”, diz Cavalcanti. Mudou, enfim, a relação das pessoas com o bairro e mesmo com o Estado, que antes estava presente apenas com a força policial. “Trouxe dignidade”, diz Cavalcanti.
É dignidade que emana da reação da aposentada Ana Lucia da Silva Oliveira, de 65 anos. “Meus filhos e, depois, meus netos sempre ficaram trancados dentro de casa porque eu morria de medo de que se envolvessem com o tráfico”, afirma. No terreno em que subiu o Compaz, antes baldio, brotara uma espécie de cracolândia, que se espalhou. Hoje, a violência caiu pela metade, e por isso outros quatro Compaz começam a ser construídos. Eles lembram uma estrutura educativa de São Paulo, o Centro Educacional Unificado (CEU), implantado em 2001, durante a gestão da então prefeita Marta Suplicy. Ele nasceu nas periferias esquecidas da cidade, como um misto de clube e escola estruturado, levando mudanças positivas para as vizinhanças. A iniciativa se multiplicou nos anos seguintes e hoje São Paulo abriga 56 CEUs, cujas atividades vão além do escopo original, que propunha educação e lazer. “Oferecer benefícios como a possibilidade de tirar documentos pessoais, apesar de ser algo tão básico, já promove inclusão”, diz Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). “É modelo que inclui em uma cidade construída para excluir os mais desfavorecidos.”
Trata-se, enfim, de remédio contra o crime, contra a violência policial, contra a guerra civil que não leva esse nome. O Rio de Janeiro talvez seja o exemplo mais conhecido da ineficiência dessa engrenagem, movida a policiamento ostensivo. Mesmo com o governo federal tendo enviado tanques para patrulhar favelas, as facções criminosas continuam a dar as regras nos morros. E a população fica em meio ao fogo cruzado entre traficantes e policiais. “Os representantes das facções dizem que é melhor morrer cedo, antes dos 25, mas ter mulher e dinheiro, do que levar uma vida longa sendo humilhado pelo sistema”, diz Manso. O urbanismo social busca reverter essa lógica — daí sua beleza e relevância. O projeto Música Encantada, de ensino de violão, flauta, violino e canto em favelas, tem um jeitão simples, mas a grandeza das ideias renovadoras. Faz seus alunos virarem gente, simples assim. “Não há segurança pública sem urbanismo social”, diz Ricardo Balestreri, ex-secretário nacional de Segurança Pública, que implantou o programa Territórios pela Paz (TerPaz), no Pará. “Chegamos a oferecer setenta serviços gratuitos à população, até consulta com médico e psicólogo”, conta. Para serem viabilizados, alguns desses atendimentos são inclusive itinerantes, viajando de cidade em cidade em carretas. É caminhada que inspira outras invenções, mostra que pode dar certo e que cada região tem sua necessidade específica.
Vale lembrar uma frase do educador Darcy Ribeiro (1922-1997), um dos criadores dos Cieps, no Rio, nos anos 1980, durante o governo de Leonel Brizola, que não vingariam como imaginado, engolidos pelo populismo, saqueados pelas milícias. “Se os governantes não construírem escolas, em vinte anos faltará dinheiro para construir presídios.” O urbanismo social anda nesse caminho. É modo de viver com dignidade. Ou, como diz o consultor colombiano Jorge Melguizo, um dos coordenadores da revolução de Medellín: “O urbanismo social coloca o cidadão no centro da transformação; não é a cidade que se transforma, mas, sim, o cidadão que se transforma e acaba por transformar a cidade”. É bonito raciocínio, no avesso do túnel escuro feito de pobreza e descaso.
Toque de civilidade
O Jardim de Alah, no Rio, na divisa entre os bairros de Ipanema e Leblon, foi sempre muito querido pelos cariocas — apesar do descaso e abandono de mais de quarenta anos, que deixou no passado o charme dos anos 1940 e 1950, abrigo de jardins com construções em art déco que recebia famílias em passeios de pedalinho e charrete. Em 2019, a prefeitura anunciou a revitalização do lugar, com ferramentas de urbanismo social. A decisão parecia não sair do papel, atropelada por sucessivos entraves burocráticos.
Agora, finalmente, deve virar realidade. O consórcio Rio+Verde, liderado pelo empresário Alexandre Accioly, venceu a parceria público-privada de recuperação do Alah. Será uma das transformações urbanísticas mais relevantes da história do Rio. Haverá, ali, creches, quadras de esporte, lojas, restaurantes e um museu a céu aberto ao estilo de Inhotim, próximo a Belo Horizonte. As obras serão escolhidas por uma comissão formada por nomes como Vik Muniz e Beatriz Milhazes. “O jardim estava largado, sempre com portões trancados e subutilizado”, diz o arquiteto Miguel Pinto Guimarães, autor do projeto vencedor. Espera-se que a renovação signifique a recuperação da civilidade subtraída pelo vazio e pela sujeira.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858