2017: o ano da caça às bruxas na cultura
Desde que protestos levaram o Santander Cultural a cancelar exposição sobre diversidade em Porto Alegre, manifestações contra as artes grassam pelo país
Ela teve início apenas em setembro — embora para alguns tenha começado com o apagar de grafites pelo prefeito João Doria, em janeiro —, mas de modo tão intenso que a perseguição às artes marcou o ano. De um lado, mostras, peças e artistas que se propuseram a investigar e refletir sobre temas como gênero e diversidade sexual. De outro, conservadores — o termo se refere aqui à moral, não necessariamente à política —, que viam nessas investigações uma grande imoralidade e a apologia a crimes como pedofilia e zoofilia.
O recrudescimento do embate levou o Masp, maior museu da América Latina, a restringir para 18 anos uma exposição sobre sexualidade, sua principal mostra em um ano. Mais tarde, o local reviu a classificação indicativa, mas por orientação do Ministério Público e não porque o clima tenha amainado. Ao contrário: ele segue quente — em novembro, contou até com uma fogueira para uma boneca que, vestida de bruxa, simbolizava a filósofa americana Judith Butler, autora do conceito de “performatividade de gênero”.
Relembre como surgiu e se desenrolou a caça às bruxas nas artes brasileiras em 2017:
Queermuseu
No domingo 10 de setembro, o Santander Cultural fechou, semanas antes do previsto, a exposição sobre diversidade que patrocinava em Porto Alegre (RS). Motivo: quadros da mostra Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, como a tela Cena de Interior II, de Adriana Varejão, que reúne ilustrações de atos sexuais diversos, desagradaram a visitantes conservadores — e a outros que compartilharam as críticas, viralizando-as na internet. Entre os que se opunham à mostra, estava o MBL (Movimento Brasil Livre), grupo que tem entre seus fundadores um cantor do Bonde do Rolê (de canções como Picolé, que faz uso de metáforas bastante óbvias ao falar de sexo oral).
Jesus transgênero
A peça fala sobre tolerância, harmonia e congraçamento. Apesar de serem todos valores defendidos pela grande maioria das religiões, o monólogo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu enfrentou a oposição especialmente de religiosos, por sua releitura da figura de Jesus Cristo, aqui representado como transgênero. A ideia da dramaturga britânica Jo Clifford, também ela transexual, era mostrar que transgêneros precisam de compreensão e acolhimento, e que esse seria o caminho para a reconciliação social. O espetáculo teve sessões proibidas em Jundiaí (SP) e correu risco semelhante em Porto Alegre (RS), onde teve decisão favorável da Justiça. Leia resenha da peça aqui.
Performance do MAM
Tão ou mais barulhenta que o cancelamento da Queermuseu foi a reação — por vezes violenta — contra a performance La Bête, do coreógrafo fluminense Wagner Schwartz. A proposta é emular uma das peças articuladas da série Bichos, da artista plástica mineira Lygia Clark. Por isso, Schwartz se dispõe nu sobre um tablado e permite que os espectadores interajam com ele — como se faz com as peças de Lygia, de modo a mudar a sua posição sobre o tatame. A performance não era inédita — assim como a peça com um Jesus transgênero já havia tido sessões em São Paulo e quadros da Queermuseu já haviam sido exibidos antes, sem causar furor —, mas a sua realização na abertura do 35º Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM), na esteira da Queermuseu, provocou enorme alvoroço. Uma parcela dos críticos mais fervorosos foi até a porta do museu e chegou a agredir seus funcionários. A performance entrou até para a pauta da CPI dos Maus Tratos, do senador Magno Malta, que pediu condução coercitiva de Wagner Schwartz. O STF negou.
Sexualidade no Masp
Este não foi um caso em que uma obra de arte ou um artista foi alvo de ataque, mas um episódio em que, diante do recrudescimento do moralismo, uma das mais importantes instituições artísticas do país tomou uma medida preventiva bastante discutida: a de restringir o acesso a uma exposição sobre sexo a visitantes a partir de 18 anos. Nem mesmo acompanhados de pais ou responsáveis, menores poderiam entrar em Histórias da Sexualidade, do Masp. Depois, com base em um parecer do Ministério Público, o museu reviu sua decisão. Não sem certo alívio para Heitor Martins, presidente da instituição, que disse a VEJA, em primeira mão, nunca ter privado os filhos de qualquer obra de arte, sempre desejar ampliar o acesso à cultura e ter tomado a resolução que tomou apenas por temer um processo judicial que acabasse por inviabilizar toda a mostra.
Judith Butler
A filósofa e professora americana é referência em estudos de gênero há quase trinta anos — desde que lançou, em 1989, o livro Gender Trouble, traduzido no Brasil, pela Civilização Brasileira como Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Além de ser uma acadêmica respeitada há décadas, ela já havia estado no Brasil para falar sobre o tema que a tornou mundialmente conhecida, sem sofrer qualquer agressão. Desta vez, em uma viagem para discutir “Os Fins da Democracia”, título de um seminário de que participou no Sesc Pompeia (“fins” como “finalidades”), ela encontrou um país em polvorosa, desde que conservadores passaram a se expressar com veemência sua oposição a temas que consideram “nefastos” para as famílias. Além de um protesto na frente do Sesc, com direito a uma boneca vestida de bruxa incendiada em uma fogueira, imagem que remete à Idade Média, Judith foi atacada por uma mulher no Aeroporto de Congonhas, quando já embarcava de volta para os Estados Unidos. Em artigo publicado na Folha de S.Paulo após o seu retorno, a filósofa agradeceu aos que a trataram com “carinho” e “respeito” e ironizou a posição dos conservadores, lembrando que, ao que se sabe, há pedofilia na Igreja Católica, mas não entre os estudiosos de gênero ou na comunidade LGBT, que milita por tolerância.