450 anos de Caravaggio: o gênio como você nunca viu
No aniversário do mestre barroco, Itália e Vaticano lançam moedas comemorativas, e estúdio disponibiliza imagens de suas obras em altíssima resolução
No dia 29 de setembro de 1571, há exatos 450 anos, Michelangelo Merisi da Caravaggio nascia na pequena cidade da região italiana da Lombardia (hoje com 14 112 habitantes) que lhe empresta o célebre sobrenome. O pintor barroco morreu cedo, aos 38 anos, possivelmente da infecção causada pelo ferimento de um golpe de espada durante uma briga, mas teve tempo mais que suficiente para inscrever seu nome entre os gênios absolutos da pintura. Irascível, boêmio e de existência errática, Caravaggio carrega em sua biografia a acusação de ter assassinado um homem. Isso não impediu, contudo, que caísse nas graças da Igreja Católica – que se valeu de seus quadros dramáticos, teatrais e espetaculares como arma valiosa na luta pelas almas e mentes contra o protestantismo durante a Contrarreforma.
Na Itália, a efeméride foi ofuscada pela pandemia e pelas comemorações dos 700 anos do poeta maior do país, Dante Aleghieri. Mas a data não passou em branco. A Casa da Moeda italiana cunhou uma moeda pelo 450º aniversário do nascimento do artista, dedicada apenas a colecionadores e feita com 6,45 gramas de ouro. O Vaticano também lançou uma bela moeda retangular em homenagem ao pintor. Mas a maior novidade é a multiplicação de imagens em altíssima resolução de sua obra, disponibilizadas na galeria virtual do estúdio Haltadefinizione. Em 2010, a obra Cesta de Frutas, da Galeria de Arte Ambrosiana, foi uma das primeiras obras digitalizadas de Caravaggio – a qualidade da resolução permite ampliar a imagem até 40 vezes em relação ao tamanho original das telas, permitindo observar em reveladores minúcias as técnicas e segredos do artista.
Desde então, a empresa não parou de ampliar o acervo digital dedicado às obras-primas de Caravaggio. Abriu o ano do 450º aniversário com a digitalização de três pinturas preservadas na Galeria de Arte Antiga, sediada no Palácio Barberini, em Roma. O São João Batista, o São Francisco em Meditação e o famoso Narciso (cuja atribuição é muito debatida hoje) foram disponibilizados recentemente no acervo virtual da Haltadefinizione. Em breve, uma famosa pintura não revelada pertencente à Galeria Borghese, também em Roma, ganhará uma versão com tecnologia de digitalização 3D.
“Digitalizar permite superar limites físicos como altura, distâncias de segurança e limites de tempo da visita ao vivo, para explorar com precisão e conforto os detalhes que o olho não poderia apreciar diante das obras originais”, disse a VEJA Luca Ponzio, fundador da Haltadefinizione, que é parceira de diversas instituições culturais italianas. “Durante a pandemia, com o fechamento de museus, a digitalização em gigapixel permitiu que a arte fosse apreciada de uma forma diferente, de casa qualquer um poderia acessar a Internet e admirar a beleza das obras de uma nova maneira”, completa Ponzio. É não só fantástica, mas também inédita a possibilidade de observar os trabalhos do gênio com tal nível de aproximação. Tome-se as obras-primas hoje expostas na Igreja de San Luigi dei Francesi, em Roma, um verdadeiro baú que conserva as telas do artista dedicadas a São Mateus. A capela dentro da igreja não é acessível e os visitantes podem apenas admirar as pinturas à distância, em meio às sombras.
As imagens podem ser acessadas no arquivo digital da Haltadefinizione (https://www.haltadefinizione.com/). E confira aqui três exemplos que atestam a obra singular de Caravaggio:
BACCO
Detalhe 1 – O Baco da Galeria Uffizi contém todos os elementos geniais e revolucionários que caracterizam o estilo do artista. Na sua versão digital em altíssima definição é possível apreciar plenamente o jogo de luz e sombra e a maestria na reprodução de reflexos. No detalhe, a mão esquerda segura a taça, e provavelmente o vinho acabou de ser derramado, como os círculos concêntricos no líquido sugerem
Detalhe 2 – As unhas estão sujas, um detalhe excepcional da vida, como as bolhas na superfície do vinho que fazem perceber a imediatez do gesto e do movimento. É uma marca quase constante dos personagens de Caravaggio – o artista costumava escalar como modelos gente pobre e sofrida, como mendigos, prostitutas e crianças de rua
Detalhe 3 – É sabido que Caravaggio gostava de assinar ou marcar obras inserindo sua figura entre objetos ou nos rostos de outros personagens. Aqui, na superfície do vinho dentro da garrafa, pesquisadores descobriram o esboço do rosto de um homem – possivelmente, um autorretrato do artista
JUDITE E HOLOFERNES
Detalhe 1 – A visão aproximada do ponto em que a lâmina da faca de Judite rasga o pescoço de Holofernes, em cena baseada em narrativa bíblica do Antigo Testamento, expõe a técnica excepcional do artista para conferir realismo e movimento à pintura. Dá quase para imaginar o fluxo vívido de sangue jorrando da ferida bruta.
Detalhe 2 – O efeito de luzes e sombras é a marca por excelência de Caravaggio. E aqui se expõe o grau de obsessão do pintor com a fidelidade ao foco luminoso da composição: a mancha branca no canto do olho de Holofernes indica que um facho bruxuleante de luz encontra-se em algum ponto à direita da cena
Detalhe 3 – A maestria do artista ao compor as dramáticas expressões de seus personagens explode na fronte cerrada da idosa que testemunha a cena, com suas rugas profundas e lábios apertados
A CRUCIFICAÇÃO DE SÃO PEDRO
Detalhe 1 – De novo, as expressões faciais caravaggescas dão seu show: o olhar distante de São Pedro ao ser crucificado sinaliza resignação com o destino, mas as rugas proeminentes denotam que o santo não o cumpre sem dor ou sofrimento. A barba copiosa e branca mostra todo o detalhismo frenético das pinceladas do artista
Detalhe 2 – Nas telas de Caravaggio, detalhes quase imperceptíveis dão o tom dramático que impacta o espectador. Vendo de perto o prego que perfura a mão de São Pedro, nota-se que há um sangue escuro e profundo em sua ponta
Detalhe 3 – De novo, eis o pintor que arrancava ouro da degradação humana: A sola suja dos pés e suas marcas indicam que o rapaz que ajuda a crucificar o santo é alguém do povo – decerto, mais um modelo paupérrimo usado por Caravaggio