Logo após o fim da II Guerra Mundial, em 1945, a jovem Wislawa Szymborska se filiou poética e politicamente à ilusão da utopia socialista — que imaginava prestes a se concretizar com a entrada de seu país, a Polônia, na esfera da extinta União Soviética. Nessa etapa da vida, ela escreveu poemas como Lênin, em homenagem ao líder comunista da Revolução Russa de 1917. Ao publicar seus primeiros textos, abraçou o realismo socialista, movimento que arregimentava as obras literárias como odes ao regime e a sua capacidade produtiva (supostamente) inigualável. De autoria das jornalistas polonesas Anna Bikont e Joanna Szczesna, a biografia Quinquilharias e Recordações, com lançamento em 17 de julho, acompanha as metamorfoses da poeta polonesa, que passou de entusiasta do regime a crítica ferrenha do Estado policial implantado sob o mesmo, culminando com sua consagração com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1996.
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A ruptura tanto com a ideologia soviética quanto com o embotado realismo socialista veio nos anos 60, em razão da distância entre as promessas emancipatórias e o cotidiano opressor do socialismo real. Wislawa assim refletiu sobre o ímpeto utópico de seus anos de poeta militante: “Eu pertenço a uma geração que acreditava. E, quando deixei de acreditar, parei de escrever aqueles poemas”. Ela se arrependeria amargamente do engajamento pró-regime autoritário: “Cumpri minha ‘tarefa poética’ com a convicção de que estava fazendo o certo. Essa foi a pior experiência da minha vida”. Mas foi um raro caso de escritor capaz de superar a pecha de “poeta oficial”. Se a reversão da utopia socialista em opressão totalitária turvou o espírito da jovem Wislawa, a autora viria a incorporar à sua poesia mais perguntas que respostas, e mais ironia e ceticismo ao lidar com a condição humana. Sua obra desvela com lirismo, lucidez e melancolia as marcas (e cicatrizes) da história.
Wislawa rompeu com o socialismo, mas nunca questionou o regime polonês abertamente. Fez isso, no entanto, com uma arma sutil e mais efetiva: a própria escrita. A partir de 1966, seus versos tornaram-se trincheira de resistência alegórica contra o arbítrio. “O que você diz tem ressonância, / O que silencia tem um eco”, diz no poema Filhos da Época. Para além de um gigante da poesia na segunda metade do século XX, Wislawa tornou-se cultuada. Sua fama no Ocidente foi se sedimentando aos poucos, primeiro nos restritos círculos literários, até a projeção planetária com o Nobel e adaptações de sua obra como A Fraternidade É Vermelha (1994), filme dirigido pelo polonês Krzysztof Kieslowski.
Filha do feitor de um conde, mais tarde empobrecida a ponto de não completar os estudos por falta de dinheiro, Wislawa considerava que tudo o que havia para dizer sobre si estava em seus poemas. Em conversa com suas biógrafas, disse que “fazer confidências publicamente é uma perda da própria alma. É preciso guardar algo para si mesmo”. A vida íntima da autora é circunspecta. Ainda na juventude, ela se casou com um colega poeta, mas a felicidade durou só seis anos: depois que ele morreu, permaneceu solteira e sem filhos. Gastava seu tempo entre a poesia e a produção de colagens bem-humoradas (algumas reproduzidas na biografia).
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A decantação da Wislawa artística e humanamente madura é sintetizada no poema Ocaso do Século (1987). Nele, a autora funde as esperanças e frustrações de uma geração de sonhadores diante do fracasso do comunismo. “Era para ter sido melhor que os outros o nosso século XX / Quem quis se alegrar com o mundo / depara com uma tarefa / de execução impossível.” Eis como extrair gemas preciosas da brutal desilusão.
Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694
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