Chegar perto da Mona Lisa, envolta em vidro numa parede só para ela no Louvre, em Paris, exige paciência e traquejo para furar o bloqueio de uma multidão sempre muito bem paramentada com suas câmeras e smartphones. Cerca de 10 milhões de pessoas passam por ali todos os anos para reverenciar a obra-prima de Leonardo da Vinci, um ícone renascentista que, para ser apreciado com todas as suas nuances de sfumato (a técnica de borrar o fundo da qual Da Vinci é o mestre), demanda tempo — e a fila não dá trégua. Pois a Mona Lisa anda solitária, trancada dentro do Louvre, que, como todos os mais extraordinários museus do planeta, fechou suas portas pelo necessário esforço para frear a contaminação pelo coronavírus. E, como não poderia deixar de ser, La Gioconda virou meme, de pernas para o ar e o semblante leve de quem está em pleno dolce far niente. Isso significa que o quadro ficará no limbo e que a humanidade será privada da arte quando mais precisa dela? De jeito nenhum, garantem os curadores de acervos portentosos como o do Metropolitan, de Nova York. “Compartilhamos nossos tesouros para que sirvam de inspiração a gente de todos os cantos que enfrenta esse período tão difícil”, diz Daniel Weiss, presidente do Met.
Muitas iniciativas estão fazendo uso de tecnologia para levar arte às pessoas no confinamento do lar. Não está sendo tudo erguido do zero: nesta era ultraconectada, os grandes museus já promovem há algum tempo passeios virtuais por seus valiosos acervos — mais de 2 000 deles, inclusive, podem ser assim “visitados” com a boa ferramenta Google Arts & Culture, que oferece visão de 360 graus e imagens de resolução elevada. Mas há novidades — e a ideia é compensar em alguma medida a impossibilidade de estar frente a frente com uma pincelada nervosa de Van Gogh ou com a grandeza cubista de um quadro como Guernica, apresentando novos ângulos de observação a distância e informação de primeira dada pelos próprios curadores. O Museu Van Gogh, em Amsterdã, preparou roteiros temáticos para quarentenados de todos os tipos — crianças, leigos e especialistas — e criou um aplicativo que permite ir removendo, a cada clique, uma camada de célebres telas do mestre holandês, de modo a revelar segredos por trás delas que a olho nu jamais se alcançariam. No caso de Guernica, o Reina Sofía, de Madri, disponibiliza uma ferramenta que disseca detalhes da tela, em que Pablo Picasso expôs a carnificina da Guerra Civil Espanhola, em 1937, parte do projeto #ElReinaEnCasa.
Consumir arte no laptop ou na tela de um celular, evidentemente, é uma redução da experiência estética que só a presença da obra — sua textura, seu ritmo, seus dégradés — pode trazer. A sensação de ir se afastando pouco a pouco de uma tela de Monet até entender a inteireza da imagem impressionista é única e ninguém pretende substituí-la por um tour virtual. A questão que se impõe agora é que, mesmo reclusa, a população mundial tenha acesso à boa arte, e o faça do jeito mais rico possível. Por força das circunstâncias, pode-se acabar extraindo daí algo desejável: na santa paz de suas casas, as pessoas atentam para ângulos que, não raro, escapam ao olhar devido à pressa. “Elas estão sendo provocadas a ver a arte de maneiras diversas. Isso provavelmente deixará o senso de observação mais aguçado”, reflete o filósofo Francisco Razzo. Quando os museus voltarem à ativa em todo o seu esplendor, o passeio pelas galerias poderá vir a se tornar um programa “mais pleno”, acredita.
Filósofos da arte a definem como a expressão da busca humana por dar significado à existência, pensamento enunciado primeiro por Platão. Em sua tortuosa e brilhante caminhada, Van Gogh dizia: “Quando sinto uma terrível necessidade de religião, saio à noite para pintar as estrelas”. A arte também é uma maneira de a civilização deixar viva a memória, retratando o caminhar da história, como enfatizou o filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831). Uma terceira face dela pode se revelar bastante útil neste mundo posto do avesso pela pandemia do coronavírus. Uma análise de 3 000 pesquisas sobre os benefícios da arte para os indivíduos, conduzida pela University College de Londres, concluiu que, naqueles que têm contato constante com alguma forma de expressão artística, os níveis de ansiedade baixam consideravelmente e até as respostas imunológicas melhoram. Mais uma razão para não dar vida boa à Mona Lisa.
Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681