A luta da Alemanha para salvar da crise um patrimônio peculiar: o tecno
A agitada cena de música eletrônica da capital alemã vive um paradoxo: suas baladas viraram patrimônio da Unesco, mas o setor hoje luta para sobreviver
É impossível pensar em Berlim sem o muro que dividiu a cidade por quase três décadas. No vazio criado entre os dois paredões de concreto erguidos durante a Guerra Fria surgiu uma forma de celebração jovem que, aos olhos de muitos alemães, simboliza a superação daquela época opressiva: a cultura tecno local. Se num passado glorioso a Alemanha foi celeiro de colossos da música clássica como Bach e Beethoven, em décadas recentes o país tornou-se referência na seara dos ritmos eletrônicos — dos pioneiros do Kraftwerk até as baladas movidas a DJs e drogas sintéticas da atualidade. Agora, a cena tecno de Berlim acaba de ser oficialmente consagrada como patrimônio imaterial da Unesco. O reconhecimento é uma esperta jogada de marketing e chega em hora decisiva: os clubes locais vivem uma crise sem precedentes, fruto da combinação cruel de aumento nos custos da energia, especulação imobiliária e perda de público.
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A proposta de obter reconhecimento da Unesco começou a ser elaborada em 2021 e quem liderou a campanha foi o DJ Matthias Roeingh, conhecido pelo apelido de Dr. Motte e figura célebre na noite berlinense. Fundador da Love Parade, em 1989, até hoje ele organiza a versão anual da festa, agora com o nome de Rave the Planet — um evento que somou 300 000 participantes em 2023. Além da megabalada ao ar livre, clubes como Berghain e KitKat se tornaram lendários mundo afora. Mas foi preciso um malabarismo para conceder a honraria ao tecno de Berlim. Não se trata de um ritmo local — ele, na verdade, surgiu em Detroit, nos Estados Unidos, e chegou à Alemanha via Frankfurt, onde há até um museu sobre o assunto.
O argumento que convenceu a Unesco foi a conexão emblemática das baladas berlinenses com a histórica queda do muro, em 1989. Quando as duas Alemanhas foram reunificadas, imóveis que ficavam na “zona morta” foram convertidos em clubes improvisados, fenômeno que atraiu cada vez mais gente. Entre eles, produtores de tecno de Detroit, o que ajudou a consolidar o ritmo em Berlim. Isso, concluiu a comissão alemã para a Unesco, torna único o tecno produzido na capital alemã.
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A crise que paradoxalmente melou a comemoração da honraria tem causas bem concretas. A população de Berlim vem crescendo — saiu de 3,4 milhões de habitantes em 1990 para 3,8 milhões hoje. Com a especulação imobiliária, os clubes foram expulsos dos prédios, e o símbolo maior desse fenômeno é o Tresor. Ele abriu em 1991 no cofre instalado no subsolo de um comércio abandonado próximo à hoje nobre Potsdamer Platz (Tresor é cofre em alemão). Em 2005, fechou e só voltou a ter sede fixa em 2007, numa usina desativada. “No centro da preservação da cultura tecno de Berlim estão seus locais. Eles servem como guardiões não apenas da música, mas também do ethos distinto que a define”, defendeu a Rave the Planet na candidatura pelo selo de patrimônio imaterial.
Em Berlim, os aluguéis residenciais são de prazo indeterminado, e os reajustes, controlados. No setor comercial, porém, os contratos têm validade, e a cada renovação o preço sobe, acompanhando a valorização dos imóveis e expulsando os clubes de áreas nobres. “Isso é algo que precisa ser mudado”, afirma Lutz Leichsenring, que esteve por quinze anos à frente da ClubCommission, associação que reúne os clubes da cidade.
Foi a briga por aluguel que levou o Re:mise, próximo ao Rio Spree, a fechar em novembro, ainda sem novo local para reabrir. Já o Mensch Meier foi abatido pela alta das despesas e encerrou suas atividades em dezembro. Além das disputas com proprietários, há outra ameaça: seis clubes podem fechar para o prolongamento de uma rodovia dentro da cidade. Entre eles está o ://AboutBlank, famoso por promover festas que duram três dias. Há, ainda, o impacto da inflação de energia, que subiu mais de 20% em 2022 por causa da guerra na Ucrânia e avançou outros 5% em 2023. Isso num período em que os clubes precisavam pagar empréstimos feitos na pandemia. Para o Mensch Meier, a crise foi pior porque a casa, que se posicionava politicamente à esquerda, não quis reajustar preços, de modo a não afugentar frequentadores de renda mais baixa.
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A preocupação fazia sentido, porque há menos gente indo às festas. Um dos motivos é que os turistas ainda não voltaram de vez a Berlim depois da Covid. A capital alemã recebeu 12,1 milhões de visitantes em 2023, número ainda 10% abaixo dos 13,3 milhões que estiveram na cidade em 2019. Um estudo conduzido pela ClubCommission apontou que ao menos 3 milhões de turistas estavam atrás das baladas tecno em 2019, movimentando 1,9 bilhão de euros. E não está claro quanto mais a Alemanha se disporá a oferecer após uma série de medidas de apoio aos clubes no pós-Covid, incluindo a equiparação das baladas a concertos eruditos, o que lhes garantiu regalias tributárias. Está difícil sair dessa crise do barulho.
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2024, edição nº 2887