No retrato saborosíssimo que Melissa McCarthy faz dela, a escritora Lee Israel era um ouriço: espinhos por toda parte, e em cada espinho uma dose de veneno. Antes colaboradora de revistas como a New Yorker, além de autora de biografias de certo prestígio, Lee adentrara os anos 90 em baixa total — por causa de seu gosto para escolher biografados pelos quais as editoras não se interessavam e, sobretudo, em razão de sua personalidade cortante, ranzinza e confrontadora. Lee se viu, assim, cinquentona, solitária e dura, sem dinheiro para pagar o aluguel do apartamento decrépito (faxina não era um de seus fortes), nem para levar o gato doente ao veterinário. Entra em cena o oposto complementar de Lee: cinquentão como ela, também gay e também sem um tostão para chamar de seu, Jack Hock (Richard E. Grant), que ela conheceu em um bar, era no entanto um bon vivant que vivera de flanar e namorar. Mas já perdera o viço, e precisava tanto de uma amizade que tratou de se encantar com os modos rudes e o esnobismo intelectual de Lee. Das voltas desse acaso, surgiu um outro: a escritora descobriu que era capaz de escrever cartas que imitavam à perfeição a mordacidade e as tiradas espirituosas da correspondência de Dorothy Parker, ou de Noël Coward. Nos sebos nova-iorquinos, as falsificações de Lee passavam fácil por artigos reais. Eram tão bons os seus textos que, ainda que não fossem genuínos, mereceriam sê-lo. Rica, Lee não ficou. Mas, enquanto o esquema durou, viveu com conforto — ainda que em sobressalto constante, com medo de ser desmascarada. Quinze anos depois de o ser, faturou de novo com a ideia, ao publicar a autobiografia em que se baseia Poderia Me Perdoar? (Can You Ever Forgive Me?, Estados Unidos, 2018), já em cartaz no país, com três indicações justas ao Oscar.
O título é uma brincadeira faceira de Lee. Tirado de uma carta (falsa) em que Dorothy Parker dizia nem imaginar o que teria feito em uma noite de bebedeira, ele mais se gaba que pede desculpas: o talento de Lee era bem maior que sua fama e suas realizações, e ela tinha orgulho do seu ventriloquismo literário. Esse conflito, o de se saber errada mas sentir-se certa, norteia o filme modesto mas competente da diretora Marielle Heller, que filma Nova York como o Woody Allen de três ou quatro décadas atrás, em cores outonais e detalhes vívidos. O que dá corpo a esse estudo tão afetuoso de uma salafrária casual, porém, é a química fácil e exuberante entre o ótimo Grant e a esplêndida Melissa — atriz que faz da frustração, da limitação e do desprezo a matéria-prima de sua comédia trágica.
Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621
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