Nas constantes adaptações de obras literárias para o cinema, há um fato inequívoco que vem se repetindo há décadas: se o filme for bom e fizer sucesso, as vendas da obra que o inspirou disparam — assim como o interesse pelo escritor. Foi o que aconteceu com o livro Erasure (2001, sem tradução no Brasil) e com a carreira do seu autor, o americano Percival Everett, 67 anos. O filme Ficção Americana, dirigido por Cord Jefferson, foi indicado no último Oscar a cinco estatuetas e venceu na categoria Roteiro Adaptado. Com isso, o romance de mais de vinte anos voltou triunfal ao topo das listas de mais vendidos. E seu autor, escritor veterano com mais de trinta títulos publicados, viu sua obra ganhar uma popularidade até então impensável.
Reflexo desse renovado interesse global por Everett, acaba de sair no Brasil um trabalho mais recente do autor: As Árvores. Publicado originalmente em 2021, o romance policial poderia ser explicado como uma inventiva mistura do escritor James Ellroy (de Dália Negra e Los Angeles: Cidade Proibida) com o cineasta Jordan Peele (de Corra!). O resultado é espetacular. Dois policiais negros são enviados para investigar uma série de assassinatos macabros na cidade de Money, no Mississippi. A cidade possui um longo histórico de linchamentos e muitos moradores abertamente racistas. Novos assassinatos são executados, a onda de violência cresce e as tensões raciais também, com os policiais brancos boicotando e discriminando os agentes negros.
A história é contada por meio de diálogos, com um narrador discreto que se limita a contar as ações e não o pensamento dos personagens. Não há muitas descrições ou ambientações, e nada de elucubrações filosóficas ou metalinguísticas. Isso confere ao romance uma agilidade frenética, colocando o enredo em uma marcha crescente. A tensão das conversas é suavizada com humor, incluindo ironia, sarcasmo e deboche. Os personagens negros pertencem a uma geração que não mais teme o racismo estrutural, que o enfrenta. A frase proferida outro dia pelo jogador Vinicius Jr., depois da condenação de três jovens espanhóis que o agrediram por motivos raciais, explica bem essa mudança de eixo: “Não sou vítima de racismo. Eu sou algoz de racista”.
Nascido na Geórgia e criado na Carolina do Sul, Everett mora há mais de trinta anos nos arredores de Los Angeles, onde leciona na Universidade do Sul da Califórnia. Especialista em literatura americana, ele conhece bem o terreno em que pisa e usa sua expertise para explorar diferentes formas e gêneros. Já escreveu contos, poesias, livro infantil e romances variados. Criou histórias tocando o âmago da cultura e dos traumas americanos, como o Velho Oeste, o Vietnã, o beisebol, crimes de ódio e até um sobre uma fictícia privatização do mítico Grand Canyon. O tema racial é presente em todas essas obras.
Assim como o já citado diretor Jordan Peele e outros autores negros americanos contemporâneos — como Paul Beatty, Ta-Nehisi Coates, Colson Whitehead e Tayari Jones —, Everett aborda a questão racial de um ângulo decolonial, uma contraposição à herança nefasta do colonialismo. Eles não precisam mais lutar por direitos civis como fizeram seus antepassados. Cobram o cumprimento das leis já existentes e combatem o racismo com ironia, irreverência, paródia, sátira, humor autocrítico e, sim, fatos — indispensáveis em tempos de fake news sobre mimimi e vitimização dos negros. De certo modo, pode-se dizer que eles usam as engrenagens do sistema que ajudou a perpetuar o racismo estrutural — as universidades, a indústria cinematográfica, o mercado editorial, a grande mídia — para denunciá-lo. Há coragem e inteligência nessa nova forma de consciência negra.
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898