Meu maior prazer como cineasta é ver o filme pela primeira vez com o elenco — já que, na prática, um diretor assiste à obra tantas vezes durante a preparação que perde a sensação de curiosidade da estreia. O lançamento do meu novo longa, Deserto Particular, no Festival de Veneza deste ano foi especial. Eu estava nervoso, havia um frisson ao redor, e a sala ficou lotada. Ao fim, a reação foi maior do que esperava: o filme acabou sendo ovacionado pela plateia por dez minutos. As pessoas saíram tocadas pela história de um policial de Curitiba (vivido por Antonio Saboia) que cruza o país até o sertão baiano para encontrar uma moça com quem se relacionava num aplicativo. É uma trama sobre opostos que acham um lugar de respeito mútuo, algo urgente em nosso país. A boa recepção, seguida de um prêmio, me fez notar que vale a pena enfrentar as dificuldades de fazer cinema no Brasil.
Costumo dizer que fiz bem poucas escolhas conscientes na vida. Mudar-me para o Paraná, onde estudei cinema e abri uma produtora, não foi uma delas. Sou de Mairi, cidade no sertão da Bahia com cerca de 19 000 habitantes. Filho de um caminhoneiro e de uma dona de casa, me mudei para São Paulo para estudar. Morei com uma tia na periferia da Zona Oeste e, para pagar o cursinho, trabalhei como bilheteiro na Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Em 2000, passei em história na Universidade de São Paulo. Lá conheci minha ex-mulher. Quando nosso filho nasceu, ela quis voltar para Curitiba, onde a família dela morava. Eu fui junto. Fiquei desempregado por um bom tempo após a mudança. Então, decidi prestar o primeiro concurso público que surgisse. Foi assim que me tornei agente penitenciário. O plano era ficar só um ano naquele trabalho, mas acabei ficando sete. Nesse período, minha convivência se resumia a guardas e prisioneiros. Esse ambiente começou a me afetar de um modo preocupante. Fiquei com medo de embrutecer ou de enlouquecer. Precisava conviver com outras pessoas. Foi então que descobri pela TV o curso de cinema na Universidade Estadual do Paraná. Pensei: “Parece um bom lugar para conhecer gente nova”.
Nunca almejei trabalhar com cinema. Fui a uma sala ver um filme pela primeira vez na vida com 18 anos. Entrei no curso aos 27 anos, aos 28 rodei meu primeiro curta e percebi que era aquilo que eu queria fazer. Deixei de ser carcereiro para virar cineasta. Levei comigo da penitenciária um aprendizado que se revelaria essencial: a importância de ouvir as pessoas que nunca tiveram alguém que as escutasse. Gosto de falar sobre tipos que não conheço profundamente, em um exercício de empatia. Gosto de construir personagens com dilemas humanos: suas dores, amores e crenças — mesmo que eu não concorde com elas.
Assim fiz desde o filme Ferrugem (2018), um intenso drama adolescente, até séries de TV, como Carcereiros e O Caso Evandro. Apesar do período conturbado para fazer cinema no Brasil, sem apoio do governo federal, consegui lançar dois filmes este ano, frutos de leis de incentivo contemplados em 2016: a comédia Jesus Kid, premiada em Gramado, e o romance Deserto Particular. Entre tanto pessimismo, quis fazer filmes otimistas. Eu tinha muita vontade de rodar um filme na Bahia, onde nasci, e essa foi minha chance. Começo a história em Curitiba, onde eu vivo, e na segunda metade volto para minha terra — onde, agora, me sinto um forasteiro. Quando estou na Bahia, não sou mais baiano o suficiente, pois sai de lá aos 17 anos; e no Paraná, não sou paranaense, pois sou baiano. Ao fim da sessão em Veneza, a atriz e cineasta Bárbara Paz me disse que o filme a fez querer se apaixonar novamente. É isso que eu quero: que o mundo opte pelo amor em meio ao caos.
Aly Muritiba em depoimento dado a Raquel Carneiro
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756