Míriam Leitão já perdeu as contas de quantas vezes pisou na Amazônia. “Umas dez, pelo menos”, ela puxa da memória, antes de garantir que a resposta correta é: “menos do que eu gostaria”. Há cinco décadas, a gabaritada jornalista mineira de 70 anos se embrenha entre os mistérios, deslumbres e assombros da maior floresta tropical do planeta. Uma dessas viagens a marcou de forma peculiar. Em 2013, ela acompanhou Sebastião Salgado em uma reportagem na Reserva Biológica Gurupi, no Maranhão, na aldeia dos Awá — pontapé do projeto Amazônia, do renomado fotógrafo, vertido em livro e exposição. Lá, Míriam deparou com o maior pavor de um repórter: sem falar a língua local, o guajá, e com o tradutor ilhado após uma chuva na estrada, ela não conseguia se comunicar. Finalmente, um jovem indígena arriscou frases em um português parco. “Eu sou índio mesmo”, ele lhe disse. Ela respondeu: “E existe índio que não seja índio mesmo?”. “Índio não vende madeira”, o rapaz devolveu. Na época, o povo Awá vinha sendo encurralado pelo desmatamento, e o garimpo ilegal que aliciava também indígenas, mas não todos, como descobriu ela naquele instante. Para além disso, na imersão em uma aldeia isolada, com pouco contato com a sociedade, Míriam aprendeu um novo modo de ver o mundo e de se relacionar com a natureza e com o próximo: “Percebi minha pequenez diante da Amazônia”.
Dez anos depois, essas experiências na floresta e o traquejo acumulado ao longo de uma sólida carreira no jornalismo econômico resultaram no livro-reportagem Amazônia na Encruzilhada. O título diz respeito ao dilema em que a região se encontra: de um lado, o caminho da exploração desenfreada; do outro, a preservação inteligente e produtiva. Ao levantar dados, pesquisas e entrevistas com especialistas, autoridades e produtores locais, a autora expõe como a devastação, que aumentou exponencialmente no governo de Jair Bolsonaro, é não só um atentado ao meio ambiente, mas também uma estupidez econômica. Um exemplo simples é a contradição dos que defendem o agronegócio e o desmatamento da Amazônia ao mesmo tempo. “Sem a floresta, não vai mais chover no Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país, inviabilizando a produção”, lembra a autora.
Realista, Míriam aponta que a preservação da Amazônia só é possível se aliada a atividades econômicas capazes de gerar emprego e renda. Um exemplo é o sistema agroflorestal, que investe na produção sustentável de alimentos típicos da região. O açaí já movimenta 1 bilhão de dólares na economia local. Cacau, castanha e mandioca, para citar apenas alguns, são produtos de alto valor para exportação. O mercado agroflorestal mundial movimentou, entre 2017 e 2019, 176,6 bilhões de dólares ao ano no mundo — e o Brasil, vergonhosamente, representou apenas 0,17% desse montante. “Faltam políticas públicas para mudar esse cenário”, afirma a jornalista.
Transformar a preservação da Amazônia em números palpáveis se revela uma estratégia eficaz no incentivo ao convívio sustentável com a floresta e no combate à desinformação. Outra tática é olhar para o micro como reflexo do macro. Em 2012, o município de Alta Floresta, em Mato Grosso, entrou na lista vermelha das cidades que mais desmatavam. Os excessos da exploração culminaram em transtornos climáticos, sendo o mais drástico a seca das nascentes de água da região. Num esforço conjunto da prefeitura e de agricultores, as nascentes foram isoladas e protegidas, e a mata local foi replantada. Em entrevista para o livro, um pecuarista contou que, ao reduzir sua área produtiva fazendo rotação de pasto, lado a lado com a floresta preservada, a capacidade de produção dobrou. “Temos de ouvir a vivência dos que moram e trabalham ali, tem muito conhecimento a ser descoberto”, conclui Míriam.
Ao listar os dilemas e perigos da destruição da Amazônia, a jornalista também trouxe à luz suas muitas possibilidades: diversa e abundante em riquezas, a floresta em pé é, sim, muito rentável — lição que o Brasil precisa urgentemente aprender.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858
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