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Ao misturar fé e terror, diretor Mike Flanagan vira nova grife da Netflix

Criador de 'A Missa da Meia-Noite' encanta com "horror humanístico" e já tem mais duas produções encomendadas no streaming

Por Amanda Capuano Atualizado em 15 out 2021, 17h52 - Publicado em 14 out 2021, 10h31
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  • Entre 1692 e 1693, cerca de 200 pessoas foram levadas a julgamento na cidade de Salem, em Massachusetts, por uma suposta prática de bruxaria. Os acusados foram presos e 20 deles – em sua maioria, mulheres – acabaram executados. Tido como um caso clássico de histeria coletiva, o julgamento infame transformou a cidade em um símbolo sombrio, e foi nessa manjedoura peculiar que nasceu Mike Flanagan, o homem que capitaneia a nova onda de terror na Netflix. Nome por trás das populares A Maldição da Residência Hill (2018) e A Maldição da Mansão Bly (2020), o diretor voltou aos holofotes recentemente com a aclamada série A Missa da Meia-Noite, e já tem mais duas produções encomendadas no streaming: The Midnight Club, baseada no livro homônimo de Christopher Pike, e a minissérie de antologia A Queda da Casa de Usher, anunciada este mês e que trará para as telas os contos de gelar a espinha de Edgar Allan Poe.

    Com um pé no drama e outro no terror, Flanagan segue uma linha constantemente descrita como “horror humanístico”, sem apelar para os batidos truques do gênero. O diretor é mestre em escancarar como, não raro, nossos maiores medos não assumem a forma de monstros desconhecidos, mas de traumas corriqueiros à vida, como abusos sexuais, vícios e as consequências da soberba humana. “O horror nos dá a oportunidade de realmente olhar para nós mesmos e para aquilo que nos assusta, que nos perturba como sociedade e como indivíduos”, declarou ao New York Times. Uma piada que ronda a internet é que o horror de Flanagan promete sustos e entrega lágrimas – o que pode desagradar aos entusiastas de um terror mais gutural, mas traz um sopro de profundidade dramática às tramas.

    Na produção mais recente, A Missa da Meia-Noite, ele põe em cena alguns de seus fantasmas pessoais. O protagonista, Riley Flyn, mata uma jovem atropelada em uma noite de bebedeira, e sai praticamente ileso. Vindo de “uma longa linhagem de irlandeses bêbados”, como ele mesmo descreve, Flanagan declarou estar sóbrio desde 2018, mas reconhece que lidará com o alcoolismo a vida toda, e chegou a dizer que seu maior medo era matar alguém embriagado e sobreviver para contar a história. A trama ainda bebe de um medo ainda mais antigo: quando criança, o diretor foi coroinha na pequena Governors Island, em Nova York, e ficava inquieto com a ideia de fiéis devorando o corpo e o sangue de cristo durante a missa. “No catolicismo, é assim que você alcança a vida eterna, e o fato de isso nunca ter sido explicitamente ligado ao vampirismo me surpreendia,” comentou ele, que usou da inquietação para traçar uma alegoria estupenda sobre fundamentalismo religioso e traumas pessoais.   

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    Mike Flanagan na infância, quando era coroinha (Mike Flenagan/Twitter)
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    Mike Flanagan durante premiere de Doutor Sono em 2019 (Matt Winkelmeyer/Getty Images)
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    Destrinchar os próprios demônios, no entanto, é uma aventura recente do diretor, que se consagrou levando para as telas histórias que por muito tempo permearam apenas as páginas de livros. Na antologia das mansões mal-assombradas, tanto Residência Hill quanto A Mansão Bly foram adaptadas da literatura – a primeira, do livro homônimo de Shirley Jackson, lançado em 1959, e a segunda do clássico absoluto A Outra Volta do Parafuso, publicado em 1898 por Henry James. Flanagan ainda tem no currículo duas adaptações de Stephen King, Jogo Perigoso (2017) e Doutor Sono (2019) – e o mestre do horror não poupa elogios ao pupilo.

    Seja nos roteiros autorais ou adaptados, sua assinatura é a mesma: uma fotografia bucólica, que vez ou outra emula o melodrama, uma trama de cozimento lento, com tensão ascendente, e monólogos longos que evocam a filosofia e feridas da psiquê humana em meio a histórias de fantasmas e monstros sobrenaturais. Para segurar os diálogos rebuscados, o diretor, assim como Ryan Murphy, dispõe de uma listinha seleta de atores preferidos, que costumam dar as caras em várias produções. A esposa Kate Siegel é onipresente e, parentesco à parte, costuma entregar atuações de respeito ao lado de Samantha Sloyan, Oliver Jackson-Cohen, Henry Thomas, Rahul Kohli e Victoria Pedretti. 

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    Mike Flanagan, Kate Siegel, Oliver Jackson-Cohen e Victoria Pedretti em evento da Netflix de “Haunting of Hill House” (Emma McIntyre/Getty Images)
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    Antes de ganhar proeminência na Netflix, porém, a carreira demorou a deslanchar. Formado em mídia eletrônica e cinema pela Universidade de Towson, seus primeiros filmes foram feitos de forma independente, com orçamento modesto. Em 2006, lançou o curta-metragem Oculus: Capítulo 3, que foi pensado como uma série, mas não conseguiu financiamento. Ele, então, gravou apenas um capítulo da história, e atraiu a atenção de alguns produtores, mas o projeto não foi para a frente. Absentia, lançado em 2011, só saiu do papel graças a uma campanha no Kickstarter, uma plataforma de crowdfunding que arrecada fundos para projetos criativos. Pouco depois, o filme foi disponibilizado na Netflix e seu sucesso surpreendeu. A visibilidade permitiu ao diretor retomar o projeto de Oculus, enfim lançado em 2014. Daí em diante, entrou de cabeça na Netflix com o terror Hush, lançado em 2016, e no mesmo ano arrecadou 81 milhões em bilheteria com o popular Ouija: a Origem do Mal. Em 2018, iniciou a antologia das mansões mal-assombradas, e caiu de vez nas graças milionárias do streaming.

    Filho de um membro da guarda costeira americana que estava sempre de mudança, Flanagan chegou ao mundo em Salem em 1978, mas não morou muito tempo por lá. O breve período, no entanto, foi suficiente para que se interessasse pelos fatídicos julgamentos, que viraram porta de entrada para um fascínio completo por histórias de terror. Ainda na escola, devorou livros de John Bellairs, R.L. Stine e Christopher Pike, até ser fisgado por Stephen King com o popular It: A Coisa. O encanto foi tanto que o pequeno Mike, então na sexta série, adaptou a obra para um filme de 20 minutos gravado no quintal de casa com os amigos. Naquela época, ninguém poderia prever que o menino, décadas depois, viraria queridinho de King, e seria escolhido para a adaptação de Doutor Sono, sequência do clássico O Iluminado e que chegou a ser considerada “inadaptável.” Algumas coincidências são quase sobrenaturais.

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