Partiu da boca do próprio Eric Clapton, o “Deus”, a triste constatação, em 2017: “Talvez a guitarra tenha acabado”. No ano seguinte, a célebre fabricante Gibson entrou em recuperação judicial, sucumbindo a uma dívida de 500 milhões de dólares. Vítima da música eletrônica digitalizada e da multiplicação dos cantores em detrimento das bandas, o instrumento-símbolo do rock’n’roll parecia haver caído em desuso sem volta. Eis que a quarentena, sempre ela, prendeu todo mundo em casa, sacudiu os hábitos e costumes e reabilitou os acordes elétricos. No meio da contração geral das economias prevista para este ano, o mercado de instrumentos musicais saiu quase ileso graças às vendas de guitarras, violões e ukeleles — sim, aquela espécie de cavaquinho havaiano — para pessoas carentes de um hobby durante o isolamento social. “Foi uma retomada sem precedente”, diz Daniel Neves, presidente da Associação Nacional da Indústria da Música (Anafima).
Tanto a guitarra quanto o violão se encaixam no princípio do cocooning, ou “encasulamento”, que não é novidade, mas foi amplamente abraçado e consolidado no primeiro semestre deste incomparável 2020 por uma legião de consumidores interessados em instalar e aperfeiçoar dentro de casa atividades que costumavam desempenhar fora dela. Programador de 21 anos e guitarrista autodidata há oito, Hector Grecco mudou-se de Goiânia para o home office em São Paulo em julho e aproveitou o tempo no lar para, pela primeira vez, tomar aulas on-line. “Pude me reconectar com a música e tentar fazer algo diferente”, alegra-se Grecco, que desde então comprou mais duas guitarras e procura parceiros para formar uma banda. Não foi o único a pôr a mão na carteira. O site da megaloja de instrumentos e apetrechos musicais Made in Brazil acusou aumento de 300% nas vendas on-line entre abril e junho. A produção nacional cresceu 10% e o faturamento do mercado ultrapassou 1 bilhão de reais entre janeiro e agosto. “É a primeira vez que vejo um boom como esse. A demanda chegou a tal ponto que às vezes não foi possível atender”, diz Luiz Valezin, CEO da WMS, distribuidora da Taylor Guitars no Brasil, que comemora alta de 23% nas vendas de violões e guitarras na pandemia.
Nos Estados Unidos, a terra da guitarra elétrica, a Gibson, depois de fechar as fábricas e congelar as vendas em abril, informou em agosto que, retomadas as atividades, estava vendendo tudo o que produzia. A californiana Taylor decretou junho de 2020 o mês mais movimentado desde que a empresa foi fundada, em 1974. A Fender, que fabrica as icônicas Stratocasters e Telecasters, também celebrou a quarentena. “Caminhamos para o melhor ano da nossa história, o que nunca pensei que aconteceria quando a pandemia começou”, disse a VEJA o comandante da empresa, Andy Mooney. Além de vender guitarras como nunca, a fabricante abriu o acesso ao Fender Play, um aplicativo de aulas on-line, que ganhou 930 000 usuários. Engana-se quem pensou em uma multidão de velhos e nostálgicos roqueiros: 18% dos novos clientes do Fender Play têm entre 18 e 24 anos e 70% estão abaixo dos 45. A WMS do Brasil confirma a tendência. “Os perfis mais comuns desses guitarristas amadores são jovens entre 16 e 18 anos e adultos na casa dos 40”, diz Valezin.
Guitarra e violão se tornaram os instrumentos por excelência da quarentena porque são práticos, fáceis de carregar e de guardar e têm uma vasta faixa de preço — de 800 reais, para os exemplares mais comuns, a 30 000 reais. Sem falar no componente emocional, muito presente neste ano difícil. “O repertório de música popular para guitarra é extenso e familiar, o que torna o aprendizado mais prazeroso”, explica a americana Leigh VanHandel, pesquisadora de psicologia da música. Segundo Leigh, durante a peste negra, no século XIV, a Igreja Católica tratava pacientes em quarentena nos lazaretos da Itália fazendo-os cantar e tocar juntos, ao soar dos sinos das capelas. “A música em geral ameniza sentimentos de ansiedade, solidão e stress, e tocar cria uma sensação de conexão, vital durante o isolamento”, acrescenta. A indústria torce agora para que, passada a pandemia, os riffs não voltem a emudecer. Diz Valezin, ele próprio guitarrista: “Sempre pode haver um recuo, mas acredito que a guitarra nunca vai morrer”. Nem o rock’n’roll, baby, tampouco os riffs eternos de Van Halen.
Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708