As reportagens escritas por Billy Wilder antes de virar lenda do cinema
Livro mostra por que o jornalismo pode ser útil na criação cinematográfica
No extraordinário A Montanha dos Sete Abutres, clássico do cinema lançado em 1951, o diretor americano de origem polonesa Billy Wilder (1906-2002) revela como a narrativa jornalística muitas vezes se beneficia da espetacularização de dramas humanos. Wilder sabia o que estava falando. Antes de se consagrar nas telas com obras-primas como Pacto de Sangue (1944), Crepúsculo dos Deuses (1950) e Quanto Mais Quente Melhor (1959), ele trabalhou como repórter — e dos bons. Durante um dos períodos mais efervescentes da Europa, no fim dos anos 1920, foi um profissional que sujava o sapato correndo atrás de boas histórias. Agora, sua faceta menos conhecida é tema de Billy Wilder: um Repórter em Tempos Loucos (DBA Literatura), coleção organizada por Noah Isenberg, pesquisador da Universidade do Texas.
Nascido na Polônia, Wilder e família se mudaram para Viena em busca de ares cosmopolitas. Foi lá que o jovem, com 18 anos recém-completados, começou a carreira de jornalista. Por pura insistência, depois de tanto bater à porta de um tabloide local, Die Bühne (“O Palco”), acabou contratado mesmo sem experiências pregressas na área. E assim, na segunda década do século XX, começou a circular entre artistas da vibrante cena cultural de uma Viena ainda marcada pelo assombro da I Guerra. Ousado e confiante, conseguiu acesso a nomes relevantes. Em uma entrevista à edição americana da revista Playboy, em 1963, gabou-se de ter conversado com “Sigmund Freud, seu colega Alfred Adler, o roteirista e romancista Arthur Schnitzler e o compositor Richard Strauss. Em uma manhã”, disse ele. Nenhuma dessas reportagens sobreviveu, mas as outras que preenchem o livro mostram seu talento para a observação de costumes e o retrato de grandes personagens.
Entre outros feitos, Wilder acompanhou a passagem da trupe britânica de dançarinas Tiller Girls por Viena e a chegada do bandleader Paul Whiteman, conhecido como o “rei do jazz”. Encantado com Whiteman, o futuro diretor embarcou com o grupo de músicos e seguiu rumo a Berlim. Foi lá que produziu algumas de suas maiores reportagens, como a série em que relata sua experiência como dançarino de aluguel na agitada noite da República de Weimar. Entrevistou também Cornelius Vanderbilt Jr., herdeiro e magnata do jornalismo, e Edward VIII, príncipe de Gales.
A coletânea permite compreender por que o jornalismo esteve tão presente na jornada cinematográfica de Wilder. Películas como A Montanha dos Sete Abutres e A Primeira Página são grandes tratados sobre o trabalho da imprensa. Por sua vez, Quanto Mais Quente Melhor é uma referência direta aos passos e descompassos das Tiller Girls. Não é exagero dizer que a precisão com que construía personagens no cinema foi moldada por suas reportagens. “Wilder tinha talento para a escrita”, disse a VEJA Noah Isenberg. “Em poucas palavras, ele oferece um panorama fiel e o leitor tem uma boa sensação de como era o mundo naquela época.”
Cinema e jornalismo têm conexão entre si. O americano Stanley Kubrick, diretor de 2001: uma Odisseia no Espaço, foi repórter fotográfico, o que provavelmente o levou a enxergar o que ninguém mais via — e levar seu olhar único para os enquadramentos inovadores que marcaram seus filmes. O francês François Truffaut, pai da Nouvelle Vague, foi crítico de cinema da lendária revista Cahiers du Cinéma. “A necessidade de escrever o impulsiona a melhorar e o obriga a fazer uma ginástica mental. É quando você tem de resumir um roteiro que percebe suas fraquezas ou sua força”, disse Truffaut. Na II Guerra, cinco ilustres diretores — John Ford, William Wyler, John Huston, Frank Capra e George Stevens — foram escalados para fazer documentários e inspirar soldados contra as forças inimigas.
Além de oferecer a perspectiva histórica, as reportagens de Wilder continuam atuais. No texto “A arte dos pequenos ardis”, publicado em 1927, faz uma defesa, em tom jocoso, do ensino da mentira como disciplina obrigatória nas escolas, pois assim ela “não seria um privilégio dos poucos que têm uma predisposição natural nesse campo”. E acrescentou: “Em duas ou três décadas, as mentiras serão vistas como um implemento indispensável ao nosso cotidiano”. Em tempos de fake news e debates políticos que ignoram qualquer relação com a realidade, as palavras de Wilder não poderiam ser mais oportunas.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804