Bilquis Evely: a artista brasileira que conquistou o Oscar dos quadrinhos
Ilustradora foi premiada por 'Helen of Wyndhorn', série de fantasia gótica criada em parceria com o roteirista Tom King e o colorista Matheus Lopes

Aos 35 anos, Bilquis Evely ainda desenha à moda antiga, com papel, lápis, pincel e nanquim. Em um mundo eminentemente digital, a ilustradora, batizada com o nome árabe da Rainha de Sabá, se destaca por investir na tradição da arte. Recentemente, conquistou espaço de destaque no cenário internacional, especialmente na indústria de HQs dos Estados Unidos. Ela se tornou a primeira mulher brasileira a vencer o Prêmio Eisner, considerado o “Oscar dos quadrinhos”, por seu trabalho em Helen of Wyndhorn, uma série autoral de fantasia gótica criada em parceria com o roteirista Tom King e o colorista Matheus Lopes — companheiro dela. A obra, publicada aqui pela Editora Suma, também ganhou o prêmio de Melhor Série Limitada.
O núcleo criativo formado por King, Evely e Lopes promete coisas boas para o futuro. Helen of Wyndhorn, um raro trabalho autoral do badalado roteirista americano, que levou quase três anos para ser concluído devido à intensa pesquisa de referências, foi o segundo produto da parceria entre eles. Antes, haviam feito juntos a minissérie Supergirl: A Mulher do Amanhã, indicada a Melhor Minissérie no mesmo Eisner, que mais tarde se tornou um bestseller da DC, com a confirmação de uma adaptação para o cinema com Milly Alcock no papel-título. “Só que não posso falar mais nada sobre isso”, alertou a artista, em entrevista a VEJA, antes de qualquer pergunta mais aprofundada.
Nascida em Barueri, na Grande São Paulo, Evely demonstrou desde pequena um talento natural para o desenho. Seu pai, desde que ela era bebê, a incentivava a desenhar, segurando sua mão e criando desenhos, um hábito que também compartilhou com o filho mais velho. Ela cresceu criando personagens e histórias em seu “mundinho”, embora seu contato com quadrinhos fosse limitado à Turma da Mônica.

Aos 14 anos, um encontro casual mudaria o rumo de sua vida. Em uma banca de jornal ao lado da escola, Bilquis se deparou com uma pequena seção de quadrinhos de super-heróis. Uma revista da Supergirl desenhada pelo artista cearense Ed Benes chamou sua atenção por ser a única com uma personagem feminina. Ao folhear a revista, ela ficou impressionada com o estilo de arte, as “linhas pretas e com umas cores bonitas”. “Desde então, eu tive certeza que aquela seria minha profissão, tinha certeza que seria meu futuro”, disse ela.
Dois anos após essa descoberta, Bilquis iniciou cursos de desenho na escola Impacto Quadrinhos, onde o diretor, Clébs Júnior, a conectou com editoras. Seu primeiro trabalho profissional chegou aos 19 anos, em 2009, com a publicação brasileira “Luluzinha e sua Turma”, colaborando com outros artistas. O salto para o mercado americano veio através da Dynamite, uma editora de quadrinhos alternativos, onde contribuiu para títulos como Doc Savage e Shaft. Sua entrada na gigante DC Comics ocorreu por indicação de uma editora que a conhecia de trabalhos anteriores. O primeiro projeto foi Bombshells, uma série com uma versão retrô de personagens femininas da editora. Posteriormente, ela trabalhou em Sugar & Spike e na Mulher Maravilha.
Colaboração com Tom King
A colaboração com Tom King começou com Supergirl: A Mulher do Amanhã, publicado no Brasil pela Panini O resultado foi surpreendente: Supergirl, que era um dos quadrinhos menos vendidos da DC, se tornou um bestseller após o lançamento da série. Para Evely, isso é “quase um milagre”, pois “muita gente começou a ler, virou um bestseller da DC”. A obra foi indicada ao prêmio Eisner de Melhor Minissérie, Tom King ganhou o prêmio de Melhor Escritor no ano seguinte.
Helen of Wyndhorn foi criado em um processo verdadeiramente colaborativo. As referências visuais de Evely influenciaram diretamente a escrita do roteirista. “Na Supergirl, ele estava lendo muito (Robert E.) Howard, o criador do Conan. Ele estava gostando muito de épicos e, ao mesmo tempo, estava relendo O Morro dos Ventos Uivantes. Meio que misturou as duas coisas, aproveitou as minhas ideias e criou isso”, explica ela.

A produção de Helen levou quase três anos (de 2021 a 2024), devido à complexidade da pesquisa de referências. “No começo, eu fiquei basicamente três meses só estudando e pesquisando referências”, detalha Evely. “Tem várias camadas, tem a parte da fantasia, tem a parte da casa que é um negócio mais gótico, e ainda tem a parte mais visual, que se passa nos anos 1930. Então, tive que pensar muito em tudo: roupa, qualquer objeto, pesquisei tudo ali.”
A conquista do Prêmio Eisner, tornando Bilquis a primeira artista brasileira a ganhar um prêmio Eisner individual e a primeira mulher a receber um prêmio internacional na categoria individual, ainda é algo difícil de processar. “É tão surreal que até agora não sei, não caiu muito a ficha, então não consigo nem descrever direito o que significa”, confessa.
Quanto à inteligência artificial no campo do desenho, Evely é bastante crítica. “Acho que todo artista concorda que a inteligência artificial nada mais é do que uma cópia de muita gente. Não deixa de ser, de certa forma, um plágio. A inteligência artificial está coletando dados de pessoas que já criaram diversos estilos e texturas e está replicando. É uma cópia sem sensibilidade. Basicamente é isso que eu vejo: algo sem alma.”
Abrindo caminhos
A indústria dos quadrinhos, historicamente dominada por homens, representou um desafio para Bilquis no início de sua carreira. “Principalmente na minha época, era um público muito masculino. Quando eu comecei, lembro que conhecia talvez duas artistas, talvez três”, relembra. Artistas como Adriana Melo e Jill Thompson foram um “farol” para ela, mostrando que era possível ter sucesso. “Elas estão lá, então eu também posso”, pensava. Essa necessidade de se provar, mesmo que subconscientemente, a impulsionou a ser ainda melhor.
Hoje, Bilquis espera ser uma referência para outras meninas, assim como suas antecessoras foram para ela. “Talvez eu agora seja uma referência para outras meninas, assim como a Adriana e a Jill foram para mim. Isso é uma coisa que me deixa muito feliz”, diz ela. E observa com otimismo a mudança no cenário: “A realidade mudou. Antes eu só conhecia duas, três no máximo, e hoje não dá para contar quantas mulheres maravilhosas trabalham na área. Acho que isso facilita para as próximas gerações, para as meninas que estão começando agora e que sejam incentivadas a continuar estudando e explorar a atividade. As coisas talvez sejam um pouco mais fáceis agora. Espero que sejam.”