A morte precoce de Bruce Lee, aos 32 anos, no dia 20 de julho de 1973, por motivos até hoje misteriosos, foi marcada por uma dualidade que reflete o que foi sua vida. O ator e professor de lutas marciais chinês, que tentou ascender em Hollywood sem muito sucesso, teve dois funerais: um em Hong Kong, apinhado de fãs, e outro em Seattle, cidade natal de sua esposa, Linda Lee, nos Estados Unidos, onde foi realizado seu sepultamento, acompanhado por pouquíssimas pessoas. Em um dos obituários publicados pela imprensa americana na época, Lee foi confundido com outro ator oriental, nascido na Indonésia. O descaso parece absurdo quando se observa, com a distância temporal, a fama estrondosa que Bruce Lee alcançou — e o legado indelével deixado por ele para o cinema, além de sua contribuição para amenizar a belicosa relação entre China e Estados Unidos.
Se hoje a discussão sobre o trato recebido por orientais em Hollywood vem pegando fogo, nos anos 60, quando o ator chegou por lá, a conversa era inimaginável. Tanto que, em 1964, Lee burlou a lei vigente em alguns estados americanos ao se casar com Linda: na época, a união inter-racial era proibida no país. Tamanho preconceito se refletiu em seu reconhecimento tardio. O estrelato e o status de mito das artes marciais vieram de forma póstuma, com Operação Dragão (1973), lançado seis dias após a sua morte. Apesar de ter feito séries de TV e uma dezena de filmes antes, esse foi o primeiro e o único trabalho no qual ele atua como protagonista em Hollywood. A dedicação draconiana de Lee ao filme, com ensaios exaustivos e revisão do roteiro, fez do título um clássico do gênero das artes marciais.
Embora o ator dispense apresentações, são pouquíssimos os livros que analisam o seu legado. Lançado recentemente, Bruce Lee — Uma Vida, do escritor americano Matthew Polly, chega para suprir essa lacuna. O calhamaço de 712 páginas se impõe como a biografia definitiva ao destrinchar a vida particular e profissional do ator. Com uma vasta pesquisa e centenas de entrevistas, Polly conta como o artista fez uma ponte cultural entre o Ocidente e o Oriente, quebrando estereótipos, ao mesmo tempo que apresentou a cultura chinesa e suas peculiaridades, especialmente a graciosidade das artes marciais. Além de abrir portas para atores orientais, ele cravou na cultura pop o subgênero cinematográfico do herói do kung fu e criou uma nova arte marcial: o jeet kune do, uma mescla de modalidades coreografada como uma dança, para ser mais bem captada pela câmera (veja abaixo). “O soco de John Wayne, então, virou coisa do passado”, disse o a VEJA o biógrafo Polly.
Bruce Lee nasceu em 27 de novembro de 1940, em São Francisco, na Califórnia, por um golpe do destino. Seu pai, um artista de ópera chinesa, estava na cidade com sua trupe e com sua mãe, que acompanhava o marido na turnê. Calhou então de Lee nascer por lá. Meses depois, o casal retornou para Hong Kong, de onde o rapaz não sairia até os 18 anos. Sua carreira começou ainda na infância, em filmes chineses. Problemático, frequentemente envolvido em brigas na rua, Lee foi despachado pelos pais para os Estados Unidos. Munido de dupla cidadania e quase sem saber falar inglês (ele nunca perderia o sotaque cantonês), o ator notou a desconfiança mútua entre chineses e americanos. Foi nesse contexto que decidiu dar aulas de artes marciais a não orientais e seu primeiro aluno foi um estudante negro. A vontade de quebrar barreiras fez com que ele estudasse também boxe, caratê e jiu-jítsu. “Se os brasileiros Gracie são os messias do vale-tudo, Bruce Lee pode ser chamado de São João Batista do MMA”, brinca o biógrafo.
Com contas para pagar e dois filhos para criar, Lee deu aulas particulares a celebridades como Steve McQueen e Roman Polanski e foi consultor de lutas para astros do cinema — recorte apresentado por Quentin Tarantino no filme Era Uma Vez em… Hollywood (2019). Em 1971, Lee lançou seu primeiro filme de kung fu, O Dragão Chinês, gravado na Tailândia. Nos dois anos seguintes, faria outros três filmes com a mesma temática, até morrer repentinamente. O subgênero criado por ele atingiu o auge em seguida, com Chuck Norris e Jackie Chan, seus discípulos diretos. Não há consenso sobre a causa de sua morte, mas o biógrafo acredita ter sido por hipertermia. “Morte pelo calor mata jovens atletas com muito mais frequência que reações alérgicas”, diz. Seu legado, porém, se provou imortal.
Fenômeno global
Sob a influência de Bruce Lee, Hollywood amenizou o modo pejorativo de retratar asiáticos e adicionou ao cinema de ação a graciosidade das artes marciais
Inclusão
Até os anos 80, os chineses mal apareciam nos filmes e, quando surgiam, eram caracterizados de forma preconceituosa, como vilões cruéis ou tipos atrasados de visual rústico. Graças a Lee, astros como Jackie Chan (foto), Jet Li e Liu Yifei (a atual Mulan) ganharam espaço.
Videogames
O legado de Lee se estende até o vasto mundo dos games. Jogos de luta ganharam popularidade devido à crescente onda das artes marciais. O já clássico Mortal Kombat tem até um personagem inspirado em Lee: Liu Kang (foto), que se movimenta e grita como o ator.
Novas coreografias
O cinema de ação pré-Bruce Lee se resumia a socos insossos. Depois dele, as lutas ganharam plasticidade para causar impacto visual, com movimentos coreografados e mais lentos que o normal. A influência vai de Karatê Kid (1984; foto) a John Wick (2014), com Keanu Reeves.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752
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