Como tantas pessoas durante a pandemia, o inglês Matthew Ashton, 45 anos, decidiu mudar os móveis de lugar e dar uma nova cara à sua casa vertida em home office. Vice-presidente de design da Lego, empresa dinamarquesa dos indefectíveis bonequinhos e blocos de montar que dispensam apresentação, Ashton fez uma escultura de 10 centímetros de altura com as peças coloridas, formando um arco-íris para decorar o ambiente. O objeto que aparece ao fundo de suas videoconferências chamou a atenção de amigos, especialmente dos que compartilham com ele uma experiência de vida similar: quando criança, ainda sem saber o que ser gay significava, Ashton era vítima de bullying na escola. O que mais o machucava, porém, era a insistência dos adultos em obrigá-lo a “agir como um menino”. “Eu achava as meninas incríveis e não entendia por que não podia brincar com elas”, contou Ashton a VEJA.
As imposições deixaram marcas emocionais, mas não o impediram de assumir sua orientação sexual na vida adulta: “Eu nasci gay, não é algo que se aprende”. Há 21 anos na Lego, onde criou coleções de sucesso, do selo Star Wars ao popular Ninjago, além de assinar a produção executiva de filmes que somam 1 bilhão de dólares em bilheteria, Ashton abraçou os elogios à sua colorida e despretensiosa nova criação e decidiu, finalmente, mimar a criança que ele foi com o brinquedo que nunca pôde ter. No próximo dia 1º de junho, no mês do orgulho LGBTQIA+, chega ao mercado a invenção de Ashton: o kit Everyone Is Awesome (Todo mundo é incrível), modelo com 346 peças e onze bonequinhos monocromáticos, representando as cores do arco-íris, símbolo do movimento gay.
O conjunto é mais que um brinquedo. Na esteira de ações de outras empresas voltadas ao público infantil, a Lego marca, assim, uma posição simbólica, que atende não só à correção política em prol da diversidade, mas também a um setor carente e em expansão. Em uma das iniciativas pioneiras, a Mattel, casa da Barbie, lançou em 2019 uma coleção de bonecos sem gênero — com perucas e roupas de diferentes estilos para a criança montar como quiser. Neste ano, a Hasbro anunciou que daria à tradicional família Senhor e Senhora Cabeça de Batata a possibilidade de mudança de gênero: a criança pode vislumbrar a família que reflete sua realidade — inclusive com dois pais ou duas mães.
A principal barreira — que já começou a ruir — é o velho estigma que dita o que é supostamente ideal para meninos ou meninas, seleção que pode influir no tipo de personalidade e de habilidades que a criança terá, mas de forma alguma altera sua orientação sexual. “Desenhos e brinquedos com diferentes identidades sexuais não ‘ensinam’ alguém a ser gay”, diz a especialista em psicologia infantil Lidia Weber, da Universidade Federal do Paraná.
Uma pesquisa de 2017 do Pew Research Center nos Estados Unidos mostrou que 76% das famílias incentivam meninas a participar de brincadeiras e atividades consideradas masculinas, enquanto 64% estimulam os garotos a brincar com itens femininos. A porcentagem cresce para 80% e 71%, respectivamente, quando isolados os pais millennials, com menos de 36 anos. “Se uma criança tiver a liberdade de brincar com o que quiser, seu potencial será mais bem explorado”, afirma Lidia Weber. Ela explica que brinquedos ditos de menino costumam encorajar riscos, competições e exploração científica, enquanto os de meninas são direcionados à afetividade e às habilidades domésticas — um conjunto de capacidades, enfim, que não devem se restringir só a um gênero.
Desbravar esse terreno tem sido um esforço notável. Na TV e no cinema, grandes estúdios enfrentaram críticas na mesma medida em que arrebanharam elogios ao apresentar personagens gays em filmes e desenhos animados. Em 2016, a Nickelodeon introduziu o primeiro casal homoafetivo (e inter-racial) do canal, no desenho The Loud House. A notícia enfureceu algumas famílias americanas, que ameaçaram fazer um boicote. Em resposta, o canal aumentou a participação dos novos personagens.
Voltada a crianças de 2 a 11 anos, a Lego se sentiu confortável para homenagear o público LGBTQIA+, por saber que conta com um fiel séquito de consumidores adultos. A aposta nesse público, especialmente na pandemia, com pessoas ociosas e ansiosas em casa, levou a empresa a crescer 13% em 2020, alcançando receita de 7 bilhões de dólares. “A nova coleção não visa ao lucro, mas a passar a mensagem de que a criatividade para se expressar está ao alcance de todos, sem exclusão”, diz Ashton. O ouro no final do arco-íris ficou mais colorido.
Publicado em VEJA de 02 de junho de 2021, edição nº 2740