Deitada ao lado de um violão, Carla Bruni estampava a capa de seu primeiro disco, Quelqu’un m’a Dit, de 2002. A canção do título, sobre uma mulher que descobre um admirador secreto, fez sucesso mundial — no Brasil, foi tema de novela das 9 da Globo. O disco ultrapassou 2 milhões de cópias vendidas e foi a chancela de que Carla precisava para a transição da carreira de modelo à música. Nascida em Turim, na Itália, em família abastada, a jovem se interessou cedo pelas artes. Estudou piano e violão na Suíça e arquitetura em Paris, até tornar-se modelo de grifes como Dior e Chanel. A paixão pela música foi mais forte, e Carla voltou ao plano original aos 35 anos. Em 2008, já com fama estelar, casou-se com o então presidente da França, Nicolas Sarkozy. O matrimônio, firme até hoje, não a distanciou dos palcos. Esta semana, aos 52 anos, ela lança seu sexto disco, Carla Bruni (Universal), que flerta com o pop e a bossa nova. Em entrevista a VEJA por telefone, Carla revela sua paixão por Elis Regina, se esquiva de temas políticos e garante que os elogios à sua beleza não a afetam.
Seu novo disco, batizado simplesmente de Carla Bruni, traz nas letras assuntos pessoais. Escrever sobre a sua vida, que é tão pública, seria um jeito de retomar o controle de uma narrativa própria? Eu não diria que escrevo exatamente sobre a minha vida. Quando componho uma canção, é sobre algo além disso. São sentimentos e emoções. Às vezes eu escrevo sobre a vida de alguém, sobre um momento específico, mas sempre do ponto de vista das minhas emoções. Algo me toca, e escrevo uma frase. A partir disso, penso na melodia. Minha vida é muito pública, sim, mas sou uma pessoa que preza pelo mistério. Eu me considero introspectiva e fechada nesse sentido.
Há uma clara influência da bossa nova nas suas canções. Como se envolveu com a música brasileira? Eu me apaixonei pela música brasileira ao descobrir o disco Elis & Tom (1974), de Tom Jobim e Elis Regina. Ainda considero um dos discos mais incríveis que já ouvi. A bossa nova consegue fazer uma elegante mistura de sensualidade e sofisticação. O modo como Elis Regina canta é belo, doce e tão delicado. Sem falar na qualidade das letras, tão profundas e afetuosas. Meu pai (o chef italiano Maurizio Remmert) mora em São Paulo. Então sou muito apegada ao Brasil, e espero que as fronteiras se abram logo para retornar ao país.
A senhora já era famosa, mas ganhou mais projeção quando se casou com o então presidente da França, Nicolas Sarkozy, em 2008. Foram abundantes os rumores maldosos dizendo que estaria tentando ganhar fama ao se tornar primeira-dama. Doze anos depois, como analisa o que viveu naquela época? Foi um período muito intenso em minha vida estar ao lado do meu marido, que tinha um trabalho especial, se é que eu posso chamar a Presidência assim. Melhor dizendo, uma posição especial. Nunca quis me inteirar do que as pessoas falavam, na imprensa ou nas fofocas. É até engraçado, porque é como se todo esse barulho nunca tivesse existido.
Por que esse posicionamento? Não sou tão autocentrada, nem interessada em mim mesma. Ler ou ouvir sobre si é entediante. Eu sei quem eu sou, e os outros não sabem. É mais confortável viver sua vida sem se contagiar com o que dizem a seu respeito.
“Sexismo é algo estrutural. É comum ser sempre questionada sobre meu marido. Quando se é casada com um homem conhecido, as pessoas olham através dele, e isso é sexismo”
Qual a melhor e a pior parte de ser uma primeira-dama? Não vejo uma parte ruim. Havia, porém, uma grande pressão ao meu redor. Pois não sou envolvida com política. Conheci o meu marido quando ele já estava eleito. Eu sou uma compositora, uma cantora, fui modelo. Sou do showbiz. Eu tinha medo de fazer algo errado, ou falar algo estúpido. Sou muito brincalhona, mas imagina falar uma bobagem enquanto representa uma nação tão tradicional quanto a França? A melhor parte foi conhecer pessoas muito interessantes como a rainha Elizabeth II e Nelson Mandela, e também pessoas anônimas, que trabalham com causas humanitárias. Foi uma grande honra e, no fim, me comportei bem.
O presidente brasileiro Jair Bolsonaro fez um comentário de mau gosto sobre a aparência da atual primeira-dama francesa, Brigitte Macron, que tem 67 anos, o que causou mal-estar diplomático entre Brasil e França. O que pensa sobre o episódio? Eu ouvi falar, mas não saberia comentar as relações políticas entre o Brasil e a França. O que eu posso dizer é que Brigitte é uma pessoa muito charmosa. Ela é tão jovem. Aquele comentário sobre a idade dela não faz nenhum sentido. Quando se convive com Brigitte, não é possível limitá-la à sua idade. Ela esbanja energia, e é uma pessoa muito gentil. Meu único comentário sobre esse caso é que ela é uma mulher adorável e elegante.
E qual sua opinião sobre o mandato de Emmanuel Macron? Quando meu marido era presidente, pude observar que é fácil falar sobre quem está no poder, mas muito difícil estar naquela posição. Por isso, prefiro não fazer críticas a Macron, pois vi de perto como é complexo liderar um país.
Seu marido é conservador e a senhora está mais próxima de uma visão de esquerda. Como fazem para o casamento dar certo? Minha vida não se resume a ideologias. Prefiro sentimentos a ideais. Meu marido é de um partido conservador na França, mas ele não é uma pessoa conservadora. Quando estava no poder, também era muito pouco conservador na prática, e fez um governo audacioso. Eu não sou casada com o partido ou com o político, sou casada com o homem. Nunca me envolvi pessoalmente com política. Como a maioria dos artistas, me identifico mais com os progressistas. Mas a França é um país diferente dos demais.
Em que sentido? Se meu marido morasse nos Estados Unidos, ele seria democrata, e não republicano. Ele tem uma mente muito aberta. Não me preocupo com diferenças políticas em casa. Ele me respeita, eu respeito todas as ideias. Exceto ditadores. Mas posso garantir que estou feliz de ele não estar mais na política.
Por que não gosta de falar de política? Na minha posição, por causa do meu marido, não acho educado ou que caiba a mim falar a respeito. Além disso, a política deveria ser discutida por especialistas. Digo mais: para gostar de política a pessoa tem de gostar de poder. E, a mim, o poder não interessa, pois ele muda as pessoas. Prefiro uma vida tranquila, minha família, minha música. Eu vivo numa bolha.
Ser uma mulher bonita em algum momento foi mais uma maldição do que uma bênção? Beleza para mim é um assunto subjetivo. E nunca foi um problema. Quando você se olha, muitas vezes não vê beleza em si mesmo. A carreira de modelo é algo que demanda técnica, foi um emprego que me ajudou a entender e aceitar minha imagem. Essa habilidade de conhecer a si mesmo tem me ajudado em todas as áreas da minha vida. A beleza é relativa, não é uma ciência exata.
Relativa ou não, a senhora tem consciência de que é de fato bonita? Para mim, a beleza tem a ver com graciosidade e charme. Somos treinados a ver beleza na juventude, por exemplo. Depois de certa idade, não é mais beleza, é charme, é o jeito de conviver, é o que se passa através do olhar. A beleza tem muitas formas: eu enxergo beleza, beleza física mesmo, na maior parte das pessoas que vejo.
Essa autoconsciência tão forte sobre sua imagem afeta o jeito como enxerga o processo de amadurecer? Como tudo na vida, envelhecer tem seu lado bom e ruim. Mas o mundo mudou. Ter mais de 50 anos hoje não é sinônimo de velhice. Seria se estivéssemos no século XVIII ou XIX. O problema não é envelhecer, mas, sim, morrer. Se você envelhece, significa que não morreu, então está com sorte (risos). Claro, eu preferiria ter o corpo que eu tinha aos 25 anos de idade. Mas é impossível. Então não me preocupo com isso. Direciono minha energia para o que está sob meu controle, e envelhecer não faz parte disso. Só tenho de aceitar.
A senhora foi criticada por feministas após sair na capa de uma revista em 2012 dizendo que não achava o movimento necessário nos dias de hoje. Mudou de ideia? O feminismo é um movimento respeitável e encorajador, e naturalmente o apoio, mas o que eu quis dizer na época é que não sou uma militante. Não tenho o temperamento para isso. Eu observo e apoio o feminismo, sua história, suas causas. Mas não sou uma líder, não tenho essa habilidade. Sou como qualquer outra mulher que acredita na igualdade de direitos. Admiro como o movimento tem feito progresso ao longo das décadas, e respeito as dificuldades que mulheres no passado viveram. Sou uma grande admiradora da Simone de Beauvoir.
O ativismo não a atrai? Sim, eu me sinto envolvida com algumas causas humanitárias. Ponho minha energia em lutas contra o HIV e o Alzheimer. Há alguns anos, meu marido e eu temos levantado fundos para crianças com câncer. Essas são as causas que me tocam no momento.
“Envelhecer tem seu lado bom e ruim. Mas o mundo mudou. Ter mais de 50 anos hoje não é sinônimo de velhice. Se você envelhece, significa que não morreu, então está com sorte”
Ao transitar pelos bastidores da moda e depois em esferas do poder, deparou com experiências sexistas? Sexismo é algo estrutural. É comum, para mim, por exemplo, ser sempre questionada sobre meu marido. Isso também é sexismo. Quando se é casada com um homem conhecido como ele, as pessoas nos olham através dele, e isso é sexismo. Enfim, é normal, é um problema, mas sinto que tive sorte, pois não vivi um episódio paralisante de machismo ou de assédio ao longo da jornada.
Nem mesmo quando o presidente americano Donald Trump espalhou que teria se relacionado com a senhora? Em seguida, ele chamou o episódio de fake news. Qual sua versão da história? Não acho que valha a pena falar sobre isso. Trump foi flagrado dizendo algo que não aconteceu. Nem me lembro como me senti na época, mas isso pouco importa. Não me envolvo, nem me deixo abalar com os rumores a meu respeito.
Recentemente, o filósofo Raphaël Enthoven lançou o livro autobiográfico Le Temps Gagné, que se tornou best-seller. Na obra, ele discorre sobre o relacionamento com a senhora e, antes, seu namoro com o pai dele. Sentiu-se exposta com esse livro? Não, com certeza, não. Eu ainda não li o livro, pois não tive tempo. Quero ler. Então não posso falar exatamente sobre seu conteúdo, apenas que é sobre a vida dele, não a minha. Ele não precisa do meu consentimento, vivemos em uma democracia. Cada um pode escrever sobre o que quiser.
Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708