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Cineasta Chloé Zhao se impõe como a força criativa de ‘Eternos’, da Marvel

A diretora de 'Nomadland' comanda um épico com influências orientais, no qual personagens e cenários vêm para arejar a pirotecnia do filão

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h28 - Publicado em 29 out 2021, 06h00

O russo Fiódor Dostoi­évski (1821-1881) escreveu no colossal Os Irmãos Karamázov que não havia nada mais sedutor que o livre-arbítrio, “mas também nada de mais doloroso”. A liberdade para discernir entre o certo e o errado é uma aflição filosófica comum no universo de super-heróis da Marvel, mas proibida para os Eternos, grupo pouco conhecido do casting do gigante dos quadrinhos. Os dez seres celestiais que desembarcaram na Terra há 7 000 anos atendem às regras ditadas por uma entidade superior, que se comunica por meio da líder Ajak (a mexicana Salma Hayek). Como missionários com poderes — de laser mortal nos olhos à manipulação da matéria —, eles protegem o planeta dos monstros Deviantes e ajudam a espécie humana a evoluir: deram uma mãozinha na descoberta da agricultura, na construção de cidades e até em revoluções tecnológicas. O grupo não deve, porém, interferir nos conflitos humanos — e só pode retornar ao lar, Olimpia, quando chamado pelo chefão sobrenatural. A obediência cega é posta em xeque quando, ao fim da missão, eles se sentem traídos e, a partir daí, passam a questionar o que está por trás das intenções do comandante.

Eternos por Jack Kirby: Marvel Omnibus

Ao contrário dos demais colegas da Marvel, que agem por impulso, rejeitam autoridades, vivem em constante guerra de egos e exageram no uso do livre-arbítrio, os Eternos são calculistas, discretos e seus poderes ganham força e sentido quando usados em equipe. Criação do aclamado quadrinista Jack Kirby (1917-1994), tão afeito a mitologias e religiões, esses heróis meio alienígenas, meio deuses — mas, no fundo, deveras humanos — exigiam uma adaptação diferenciada. A proeza foi alcançada de forma notável pela cineasta chinesa Chloé Zhao em Eternos (Estados Unidos, 2021), que estreia dia 4 nos cinemas.

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Aos 39 anos e vencedora do Oscar de melhor direção deste ano por Nomadland, Chloé é uma das poucas diretoras da atualidade que ostentam, e com razão, o título de autoral. A honraria por vezes genérica é válida quando o nome do diretor, sua visão de mundo e sua força criativa sobressaem ao próprio filme e elenco. Chloé provou ser esse tipo de grife em um teste de fogo: com orçamento de 200 milhões de dólares (Nomadland foi feito com “míseros” 5 milhões) e elenco estreladíssimo, Eternos é um épico ousado que destoa, para o bem e para o mal, dos títulos que levam o selo do estúdio de super-heróis.

Figura Marvel Os Eternos Titan Hero Series, Boneco Ikaris

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As diferenças vão da preferência da diretora por locações reais — a Marvel é adepta do fundo verde e cenários digitais —, a uma emoção mais contida que o usual nas explosivas tramas típicas do filão. O distanciamento do longa dos demais do estúdio se acentua com a lista de “primeiros” que ele exibe: é o primeiro filme da Marvel a ter um beijo gay, o primeiro com uma heroína surda (vivida por Lauren Ridloff) e dono do elenco mais diverso da casa até agora, indo da hollywoodiana Angelina Jolie ao humorista paquistanês pop Kumail Nanjiani. É também o primeiro comandado por uma mulher asiática — e Chloé não desperdiça a chance. Antiga fã de mangás e samurais, a chinesa radicada nos Estados Unidos usa referências orientais nas cenas de ação, e também na relação de seus personagens com o meio e com a espiritualidade. “Meu espírito está conectado à natureza e à busca por um equilíbrio entre os humanos e o planeta”, disse ela a VEJA em entrevista via Zoom (leia mais).

O olhar contemplativo do horizonte, que diminui a imagem das pessoas na cena para exaltar a grandiosidade do planeta, já é uma marca da diretora. Em Nomadland e Domando o Destino (2017) — filme que garantiu a ela prestígio no nichado mundo do cinema independente — Chloé trafega por regiões inóspitas dos Estados Unidos, investigando desde os efeitos da cultura nativa no Sul do país até o trânsito entre nômades do século XXI. A mesma comunhão entre lugar e personagens se dá em Eternos.

Separados por séculos, os heróis aguardam onde e como querem o fim da missão. O divertido Kingo (Nanjiani) se embrenha na deslumbrante Bollywood; o sério Ikaris (Richard Madden), a sábia Sersi (Gemma Chan) e a pequena Sprite (Lia McHugh) se cruzam na agitada Londres; Phastos (Brian Tyree Henry) vive em paz com o marido e o filho em um subúrbio careta; enquanto Gilgamesh (Don Lee) protege Thena (Angelina) em um casebre no deserto onde a guerreira pode ter seus acessos de fúria sem machucar ninguém; não menos curioso, Druig (Barry Keoghan) cria uma comunidade na Amazônia, onde controla a mente dos moradores. Ainda que possa causar estranheza em fãs mais tradicionais, o filme é um criativo ponto fora da curva no mundo Marvel. Que a ousadia tenha vida longa.

Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762

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