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Cobra criada

Na última temporada de 'House of Cards', já não há Kevin Spacey. Mas a falta de Frank Underwood é compensada pelo show final da presidente Claire

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h33 - Publicado em 2 nov 2018, 07h00
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  • Sozinha na Casa Branca, Claire Underwood (Robin Wright) acaricia uma bandeira dos Estados Unidos enquanto o celular toca sem parar. Do outro lado da linha está o marido, Frank Underwood (Kevin Spacey). O caviloso presidente americano renunciara na esteira de mais um escândalo; o posto que ocupava, assim, ficou livre para uma vice sedenta de poder — a própria Claire. Na segunda tentativa de ligação, a esposa enfim tasca um “não aceitar” na tela do smartphone. Encarando o espectador, a primeira mulher na Presidência americana informa: “Minha vez”.

    A cena final da quinta temporada de House of Cards deu uma mão fenomenal aos roteiristas na tarefa de improvisar o último suspiro da série. A sexta leva de episódios, já disponível na Netflix, não conta com o ator Kevin Spacey, cuja carreira foi abatida por uma sucessão de escândalos de assédio sexual. Nas mais diferentes produções televisivas — de novelas brasileiras a soap operas americanas —, gambiarras foram sacadas para driblar imprevistos assim. Nos anos 80, uma temporada malsucedida da série Dallas acabou anulada sob a desculpa de que tudo que tinha acontecido nela fora mero sonho de um personagem. No caso de House of Cards, o fato de Claire já ter assumido a Presidência na temporada anterior facilitou — e como — a verossimilhança da operação.

    No ano passado, quando a gravação da nova temporada se iniciava, os trabalhos foram suspensos pela demissão de Spacey (entre os jovens rapazes que denunciaram avanços do ator incluíam-se profissionais da série). Foi Robin Wright quem liderou a pressão para que a Netflix não acabasse com seu primeiro sucesso original. Ao brigar pela sobrevida da série, alegou proteger 2 000 empregos gerados por House of Cards.

    A temporada feita pela e para a nova chefona exala algum cansaço, como já ficara patente na anterior. Não decepcionará, contudo, os fãs de seus tipos matreiros e situações mirabolantes. Claire é capaz de negociar um tratado com o líder russo Vladimir Putin, ops, Viktor Petrov (Lars Mikkelsen) no cantinho de um velório. House of Cards tornou-se um novelão político sem pudor — e o êxito de séries como a inglesa Segurança em Jogo prova que fez escola.

    Embora extinga os duetos e duelos dos dois protagonistas, a ausência de Frank Underwood traz a chance de examinar com lupa a anti-heroína peculiar que é Claire Underwood. Depois da morte do marido, sua presença incorpórea acossa Claire. No começo do governo, ela lida com as consequências de um acordo nada republicano feito entre Frank Underwood e os irmãos magnatas Annette e Bill Shepherd (Diane Lane e Greg Kinnear). A sombra do morto a fustiga, ainda, em sua excruciante missão central: mesmo a loira muito bem aquinhoada de peçonhas penará para provar que uma mulher tem estâmina para presidir os Estados Unidos.

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    House of Cards se encaminha para um final feminista. Mas não há que temer chateações: debaixo das medonhas contradições da personagem, talvez haja mais realismo que em tantas feministas idealizadas da TV ou do cinema. Claire é fria e perigosa como uma Lady Macbeth, mas, não à toa, abraça a defesa da mulher e outras causas nobres: ela é um monstro adaptado ao hábitat dito “progressista”. Em dado momento, supostamente deprimida, Claire isola-se e enfrenta uma conspiração. “Não se preocupem. Eu tenho um plano”, diz. Quiçá todo presidente também tivesse o seu.


    Nasce mais um novelão político

    Segurança em jogo
    CONSPIRATA –  Segurança em Jogo: sexo, intrigas e guerra burocrática (World Productions/Netflix)
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    Lançada na Inglaterra em agosto e disponível há duas semanas na Netflix, a série Segurança em Jogo (no original, Bodyguard) renova um nicho narrativo explorado com êxito por House of Cards: o novelão político feito de sexo e intrigas conspiratórias. A série de maior audiência da rede BBC em dez anos tem como protagonista David Budd (Richard Madden, o Robb Stark de Game of Thrones), um policial e veterano da guerra do Afeganistão que luta contra o stress pós-traumático. Ao evitar que uma mulher-bomba muçulmana realize um atentado suicida em um trem no qual viaja com o casal de filhos pequenos, Budd torna-se herói nacional. É promovido a guarda-costas da ministra do Interior inglesa, Julia Montague (Keeley Hawes), política durona que lidera uma cruzada contra o terrorismo. Sua principal bandeira — uma lei que permitiria ao governo britânico bisbilhotar a intimidade de qualquer um na internet — transformará a ministra em alvo. Segurança em Jogo deságua na mistura incontornável de pulsão romântica e tramoias político-­militares. Com aversão pelas ideias, mas nem tanto pelos dotes de sua protegida na cama, o policial acaba se envolvendo em uma trama perigosa. Mas é de outra matéria-­prima comum a House of Cards que a série extrai seu valor. Assim como acontece no drama sobre a Presidência americana (por sinal, inspirado em um similar inglês), a história da poderosa ministra e seu guarda-costas atormentado oferece um retrato do ambiente de politicagem e rasteiras no interior do aparato burocrático estatal. A luta aparente é contra o terrorismo islâmico. Mas, na prática, o inimigo mora na repartição pública bem ao lado. É a polícia de Londres que não quer abrir mão de sua influência, ou os figurões elusivos do serviço secreto buscando aumentar seu naco de poder e recursos. Da política ao crime organizado, os desdobramentos dessa guerra revelam-se saborosamente intrincados. Ainda que, no fundo, tudo seja tão mirabolante quanto uma novela das 9.

    Publicado em VEJA de 7 de novembro de 2018, edição nº 2607

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