Como os Stones desafiam o tempo e comprovam: há vida no rock após os 80
Na etapa americana da turnê Hackney Diamonds, banda impressiona pela energia no palco e pela força musical
O hoje oitentão Roger Daltrey, vocalista do The Who, uma das pontas de lança da invasão britânica de bandas de rock no alvorecer dos anos 1960, separa uma parte dos shows de sua atual turnê solo para responder a perguntas do público. No início do mês, numa cidade do estado americano da Pensilvânia, alguém quis saber qual era a banda de rock favorita de Daltrey. O cantor inglês não titubeou: “Só existe uma grande banda de rock’n’roll: os Rolling Stones. Ninguém é capaz de superar Mick Jagger como frontman. Eles eram fantásticos antigamente e ainda são”. A banda que Daltrey tanto admira comemorou na semana passada 62 anos de atividade fazendo o que mais gosta: excursionando por dezesseis cidades americanas, impulsionada pelo elogiado disco lançado no ano passado, Hackney Diamonds. Uma turnê, ironicamente, patrocinada pela AARP, associação dos aposentados dos Estados Unidos.
Não importa que Jagger tenha 80 anos e Keith Richards — junto com Mick, o último sócio-fundador ainda restante — também, e que Ron Wood, o guitarrista “caçula”, já some 77 aniversários. Na estrada — ou mesmo no estúdio — o núcleo central dos Stones se mantém ativo com sabedoria de veteranos e vitalidade impensável para sua idade. Assim como os Stones, muitos de seus contemporâneos vêm desafiando a passagem do tempo e suas próprias limitações físicas e criativas. Daltrey e o The Who estão entre aqueles que atravessam os anos com shows lotados — engolindo, curiosamente, as palavras que os consagraram na juventude: “Espero morrer antes de envelhecer”. Paul McCartney, com 82 anos bem rodados, cruza continentes, incansável, lotando estádios — e lá vem ele de volta ao Brasil, no final do ano. Outro Paul — Simon —, do alto de seus 82 anos, lançou em 2023 um dos melhores discos de toda a sua carreira, Seven Psalms. Ainda que por vezes cantando versões irreconhecíveis de seus clássicos, Bob Dylan, 83 anos, dá continuação à turnê Never Ending Tour (Turnê sem Fim), iniciada em 1988.
Todos, juntos, fazem parte de uma geração de artistas mergulhados num experimento inédito e ainda em andamento: haverá vida no rock depois dos 80 anos? Melhor que ninguém, os Rolling Stones demonstram que sim. Com louvor. Mick Jagger e cia. são profissionais consumados e se preparam bem para a maratona de alta demanda física. Antes da turnê, ensaiaram durante um mês de sessenta a setenta músicas nos Jim Henson Studios, em Los Angeles — o mesmo lugar onde gravaram a maior parte do novo disco. E, ciosos de que precisam apresentar um espetáculo visualmente impactante, que envolva as dezenas de milhares de pessoas que lotam os estádios onde tocam, encomendaram um telão de LED de altíssima definição, medindo 213 metros quadrados, no qual projetam detalhes de imagens vindas de catorze câmeras posicionadas no palco de 55 metros de largura, mais criações audiovisuais da agência londrina Treatment Studio.
Ao vivo, o grupo supera a si mesmo e às expectativas, desafiando a passagem dos anos e qualquer suspeita de obsolescência ou ferrugem. Podem não fazer mais dois shows por noite, como aconteceu até a mítica tour de 1972, para muitos o ponto alto da carreira dos Stones. No entanto, em 2024, são uma versão inacreditavelmente vigorosa e sanguínea daquele grupo que nasceu em 1962.
No primeiro dos dois shows que fizeram no gigantesco SoFi Stadium, em Los Angeles, conferido por VEJA na semana passada, os Stones demonstraram uma força descomunal. Jagger pode se preservar de algumas notas mais altas, deixando-as por conta de Bernard Fowler, o vocalista de apoio, mas canta talvez até melhor do que na juventude e continua dominando o palco e a plateia como nenhum outro, dançando ou correndo do começo ao fim. Como um homem de 80 anos é capaz de manter essa silhueta e essa forma física — e continuar sendo imbatível como o melhor frontman do rock? Keith adotou um estilo ainda mais primal e pesado de tocar. Ron, idem. Os dois formam um rolo compressor humano de riffs que é acachapante. E tudo se torna ainda mais forte e impactante com a pegada de Steve Jordan, o baterista que assumiu as baquetas de Charlie Watts após a morte deste, em 2021. Agora em sua segunda turnê com o grupo, Jordan permitiu-se tocar à sua maneira muito dos sucessos que os Stones desfilam no decorrer do show, imprimindo um ritmo que muita gente com a metade da quilometragem dos titulares não consegue acompanhar.
Até quando os Stones vão continuar? A pergunta assombra-os desde 1965. E a estrada percorrida é infinitamente maior que a restante. Esse é um dos elementos mais intrigantes da jornada do grupo. Mesmo assim, não há planos de aposentadoria. Fala-se de mais shows este ano (talvez até uma volta à mesma Copacabana que superlotaram em 2006) e em 2025, junto com um novo disco. Como cantam numa das melhores músicas de Hackney Diamonds, Sweet Sounds of Heaven, um dos momentos mais fortes da apresentação, os Stones parecem determinados a acreditar que ainda são jovens. Melhor para todos nós que seja assim.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902