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‘Crepúsculo’: com novo livro, a saga sobreviverá à era do cancelamento?

Autora Stephanie Meyer volta à trama vampiresca. Mas será que sua mocinha submissa e história que ecoa pedofilia passarão incólume pelos leitores?

Por Maria Clara Vieira Atualizado em 12 Maio 2020, 23h56 - Publicado em 5 Maio 2020, 10h00
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  • A onda de nostalgia que inunda o entretenimento nestes tempos de pandemia começa, aos poucos a respingar na literatura. Nesta segunda-feira (4), a legião de fãs que, há uma década, viveu a adolescência inebriada pelo tórrido romance entre uma menina sem graça e um vampiro brilhante foi presenteada com a notícia de que a escritora americana Stephanie Meyer, autora da série literária Crepúsculo, lançará um spin-off da trilogia que arrecadou 3,3 bilhões de dólares no cinema.

    Sol da Meia Noite (Midnight Sun, em tradução livre) nada mais é do que a história do primeiro livro narrada pelo atormentado Edward Cullen, o protagonista bonitão que disputa a atenção da estudante Bella Swan com um lobisomem igualmente bem-dotado. A novidade foi recebida com alguma empolgação por parte dos antigos leitores no Twitter, mas, ao mesmo tempo, trouxe consigo um questionamento pertinente à época na qual Meyer decidiu levar adiante o projeto quase arruinado pelo vazamento de doze capítulos em 2015: será sua bem-sucedida saga adolescente capaz de sobreviver aos tribunais do cancelamento? A recepção do público diante de um enredo escrito por um personagem nascido no amanhecer (com o perdão do trocadilho) do século XIX só será conhecida a partir de 4 de agosto, quando a obra estará à venda nos Estados Unidos. “Por enquanto, uma coisa é certa: a autora está se arriscando ao escrutínio de leitores que, há dez anos, pensavam muito diferente”, alerta a professora Danielle Lhoret, mestre em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e editora de Literatura do portal Minas Nerds.

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    Se, por um lado, não há nada de particularmente retrógrado no triângulo amoroso que movimenta a trama (a fórmula, afinal, continua por aí), por outro, tampouco há acenos pertinentes à crescente demanda por protagonistas femininas muito bem resolvidas, obrigada. Na verdade, é quase senso comum que a jovem Bella é tudo, menos independente. Uma vez imersa no universo dos vampiros, a garota, vivida nas telonas por uma inexpressiva Kristen Stewart, abandona os amigos de colégio e devota o resto de sua vida ao parceiro imortal. Novamente, há que se pontuar as nuances: nada na história aponta para o não-consentimento da relação ou, tampouco, para a existência de qualquer pressão psicológica por parte do rapaz. Ainda assim, mocinhas do século XXI já não aceitam de bom grado que uma fossa interminável e uma tentativa de suicídio motivada pela ausência do amante termine em uma reconciliação, como se nada tivesse acontecido. Adepta da saga Crepúsculo em sala de aula desde o lançamento dos primeiros livros, Danielle percebeu a mudança na reação das alunas de ensino médio à trama. “As meninas de incomodam com a relação de profunda dependência da Bella com o namorado. Mesmo que ele não a obrigue a nada, a reação que tem quando Edward vai embora faz lembrar um relacionamento abusivo”, explica a especialista, para quem a relação quase “paternal” entre a estudante e um vampiro também pode fazer apitar alguns radares modernos. “Na prática, ele é um homem velho, com muitos anos de experiência e muito dinheiro, enquanto ela é a menina solitária que tem problemas com o pai e se refugia no relacionamento. Óbvio que ninguém leu pensando assim na época, mas pode ser uma questão agora”, avalia Danielle.

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    Vale lembrar também que, como qualquer universo fantástico infanto-juvenil, o mundo de Crepúsculo tem suas próprias idiossincrasias (a começar por um vampiro que brilha e, mesmo morto, é capaz de engravidar a mocinha), razoavelmente digeríveis à base de alguma suspensão de descrença – a capacidade de imergir na história sem levar em conta que, bem, criaturas mágicas não existem. É de se questionar, contudo, se a ávida lupa pós-moderna há de deixar passar a súbita paixão do lobisomem Jacob pela filha recém-nascida do casal protagonista. Há quem jure que o moço seria um “protetor” – ao menos, enquanto a rebenta meio humana, meio vampira, for criança. Há quem jure que, desde cedo, o negócio tem ares de pedofilia. “Já achava esquisito desde a primeira vez que li. Há vários pontos na história que requerem um cuidado extra nestes tempos”, diz a ex-fã Juliana Duarte, também do grupo Minas Nerds. Ressalte-se, por fim, alguns comportamentos tipicamente conservadores – ainda que não necessariamente nocivos – adotados pelas personagens: em pleno século XXI, não é todo dia que se depara com um romance no qual o rapaz zela pelo sexo só depois do casamento (um claro reflexo da criação mórmon de Meyer).

    Desde que metade do novo livro apareceu na internet, ventila-se que a história contada pelo próprio Edward tem, justamente, o objetivo de diluir as acusações de sexismo feitas pelos que, lá nos anos 2010, já se debruçavam sobre o assunto. Na prática, contudo, trata-se de uma forma de manter a história viva. Embora incerto, o futuro de Sol da Meia Noite pode ser vislumbrado à luz da versão adulta da saga Crepúsculo, bem mais polêmica que a inspiração infanto-juvenil e que também contou com um “spin-off” do lado masculino na tentativa de reaquecer o mercado: 50 Tons de Cinza, de E. L. James, deixou fãs à deriva com Grey – a que parece, o imã da saga está mesmo na reprodução (fiel ou não) do desejo feminino. E se, por um lado, James encarou o desafio de humanizar – ainda que sem muito sucesso comercial – um homem com desejos sexuais, digamos, incompreensíveis (para fazer jus à fala memorável), a Meyer cabe o obstáculo de conquistar as leitoras do século XXI com o retrato do pensamento de um jovem que escapou da morte em meio à pandemia de gripe espanhola. Os próximos meses dirão se o romântico vampiro cairá nas graças da geração coronavírus.

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