É impossível escapar deles: ao navegar nas redes sociais, assistir à TV e até conferir livros de autoajuda ou filmes no cinema lá estão os famigerados “influenciadores”. Na última década, a categoria tornou-se a cara do vazio e da superficialidade da era digital, ao vender estilos de vida supostamente autênticos no Instagram, Facebook ou TikTok — e tome foto com bichinho, novo look clicado de forma “espontânea” num iate e textões “sinceros” sobre tudo. Mina de ouro para a publicidade, com sua capacidade aparentemente infinita de atrair milhões de seguidores, essas celebridades enriqueceram e ganharam poder para além dos cliques — chegaram ao topo do mundo, enfim. Mas começam a surgir sinais concretos de que o excesso de hedonismo e inconsequência no uso desse poder agora cobra sua fatura: o reinado dos influencers está em xeque — e não apenas no Brasil.
Uma das provas mais recentes das rachaduras na imagem dessas figuras vem do exterior. Blogueira desde 2009, a italiana Chiara Ferragni construiu uma fortuna de 530 milhões de reais com compartilhamentos sobre sua rotina. Atraía quase 30 milhões de seguidores no Instagram até dezembro, quando sua credibilidade ruiu com um escândalo: em campanha para uma marca de doces, a empresária de 36 anos alegava que todas as vendas seriam revertidas para um hospital infantil, mas o saldo de 1 milhão de euros (5,3 milhões de reais) acabou embolsado pela marca e por Chiara. O caso resultou numa multa milionária por práticas comerciais lesivas, na fuga de parceiros importantes como a Coca-Cola, além da perda de mais de 151 000 admiradores no último mês.
No Brasil, polêmicas parecidas estão se tornando cada vez mais frequentes, com um reflexo direto no mercado da frivolidade digital. Um exemplo disso é o levantamento exclusivo do instituto AtlasIntel para VEJA que examinou a confiança das pessoas nos influenciadores digitais. Na pesquisa com quase 1 700 pessoas de todas as regiões, 40% dos entrevistados dizem que acompanham a turma — mas apenas 26,5% confiam neles. Outro dado eloquente é que somente 21,7% já compraram algo divulgado por um blogueiro (leia o quadro). É compreensível: em uma indústria sem transparência, o marketing de influência vem despertando desconfiança crescente.
No livro The Influencer Industry (A Indústria do Influencer, inédito no país), a americana Emily Hund explica a razão disso: as estrelas do ramo atuam em uma terra sem lei, onde os limites éticos ainda não foram traçados. “Essa é uma história de comercialismo desenfreado e oportunidades assustadoras de criar impacto social negativo, da desinformação à manipulação de nossa individualidade”, escreve a estudiosa de cultura digital da Universidade da Pensilvânia. Exemplo desse submundo repleto de falsidade é o caso de Ruby Franke, youtuber famosa por dar aconselhamentos sobre maternidade, condenada nesta semana à prisão nos Estados Unidos por acusações de abuso infantil contra os filhos — um deles, de 12 anos, foi achado desnutrido e pediu socorro após fugir de casa e denunciar a mãe.
O noticiário nacional também tem sido pródigo em revelar facetas nada abonadoras dos influencers. Celebridades que divulgam jogos de azar em plataformas de apostas como a Blaze viraram alvo recentemente de uma operação policial em vários estados por organização criminosa e lavagem de dinheiro devido à propaganda de um certo Fortune Tiger, o “Jogo do Tigrinho”, modalidade de cassino on-line do tipo caça-níquel — ilegal no país. Figuras populares como Carlinhos Maia e Rico Melquiades, que fazem parte do time de influencers do negócio, ainda não sofreram penalizações e ressaltaram, de forma típica, que não teriam responsabilidade por quem se arrisca nos cassinos, alegando se tratar de uma escolha individual do seguidor. “Se eu disser: ‘Pule do penhasco’, você vai pular porque eu tô dizendo? Não! Eu não jogo! Eu só divulgo”, disparou Maia a seu público de 29 milhões de pessoas. A associação à Blaze ampliou a visão crítica sobre o controverso Felipe Neto, que desagrada gregos e troianos com seus posicionamentos rasos e equivocados sobre a maior parte dos assuntos, incluindo política, e Viih Tube, flagrada divulgando vídeos que simulavam saques de grandes quantias de dinheiro ganhas supostamente com o joguinho.
A má influência virtual já produziu uma tragédia. Na virada de 2024, uma notícia falsa veiculada em páginas de fofoca apontando uma jovem mineira como affair do youtuber Whindersson Nunes desencadeou uma corrente de bullying na internet. Replicado por uma horda de influencers e agravado pelo deboche do administrador do perfil conhecido como Choquei, o episódio levou Jéssica Canedo, que já sofria de depressão, a tirar a própria vida aos 22 anos. Após sua morte, o Choquei perdeu mais de 1,5 milhão de seguidores e saiu do ar para “descansar” a imagem.
Nas redes correm soltas, ainda, as promoções de produtos e serviços duvidosos. Uma pesquisa recente com 2 000 pessoas feita pela Universidade de Portsmouth, na Inglaterra, revelou que 22% dos seguidores de influencers já compraram produtos falsificados por sugestão deles. Nas áreas de saúde e beleza, a coisa não é menos complicada. A brasileira Virginia Fonseca já propagou produtos de beleza “milagrosos”, como um gel redutor de medidas e gomas para crescimento capilar, ambos sem suporte científico. Famosas como Kéfera incentivam hábitos alimentares bizarros, como o consumo de pepino com gelatina light para saciar a fome. Em janeiro, a maquiadora Franciny Ehlke mostrou aos 16 milhões de seguidores um “soro para crescer cabelo” aplicado de forma intravenosa — o discurso era que ela estava apenas testando o procedimento e, ironicamente, não queria influenciar ninguém a fazer o mesmo até saber o resultado.
A tentativa de algumas empresas tradicionais de pegar carona nessa onda levou a desastres como o da Globo, que escalou influenciadores para fazer a cobertura do Carnaval, entre eles, Vítor diCastro, famoso por produzir conteúdos de astrologia. A ideia era atrair anunciantes, mas o resultado foi uma abordagem amadora sobre os desfiles e entrevistas vergonhosas.
Mesmo com resultados sofríveis (e arriscados), a lógica explorar a imagem dos influencers para tentar atrair audiência e publicidade segue firme. O que antes era uma ferramenta de comunicação e entretenimento se tornou um negócio lucrativo — projeta-se que ele atinja o valor de mercado mundial de 24 bilhões de dólares neste ano, segundo o relatório Influencer Marketing Benchmark 2024. Na publicidade, o influencer virou o novo graal: investir neles para divulgar produtos custa bem menos que uma campanha tradicional na TV. “Eles são importantes para estabelecer diálogos com os consumidores”, defende Luiz Lara, da agência Lew’Lara. Mas nos bastidores das agências já há preocupação com a fadiga das ações com influenciadores — e a consciência crescente de que eles podem se tornar tóxicos para as marcas, quando escolhidos sem critério. “Como tudo na vida, existe o lado bom e ruim. A questão é uma avaliação rigorosa”, diz o publicitário Marcos Quintela, da VML.
Os últimos escândalos envolvendo influencers expuseram os mecanismos nebulosos que regem esse mercado. No Brasil, a fartura de oportunidades propulsionou agências e assessorias poderosas, que estão por trás dos fenômenos da influência e dos perfis de fofocas, promovendo uma simbiose entre eles. A mais notória é a Mynd8, que enfrentou uma crise de imagem após ser associada à morte da mineira Jéssica Canedo, já que a empresa conecta grandes marcas a seus 450 agenciados, que incluem a Banca Digital, projeto que gerencia mais de trinta perfis ditos de “entretenimento”, como a Garotx do Blog — um dos que veicularam a mentira sobre a garota morta. Sua dona, Fátima Pissarra, alega que os afiliados da Mynd8 sempre tiveram liberdade editorial. “Estamos abastecendo os perfis com mais informações que possam ajudar nos critérios e na atenção. Mas não posso garantir que amanhã não vai acontecer nada”, admite.
Alguns países já se mexem para regular a terra selvagem dos influencers. Na França, uma legislação proíbe a promoção de serviços e produtos de risco, entre os quais procedimentos estéticos, investimentos em criptomoedas e apostas. No Brasil, o projeto de lei 2347/22 busca reconhecer como profissão o trabalho de influenciadores para que sejam propostas regulamentações. Em paralelo, o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) tem desde 2020 um manual de boas práticas para influenciadores. Como se vê, o tal código ainda não pegou por aqui.
Enquanto o debate prossegue, já há uma solução prática em cena: a atuação dos “des-influencers”, profissionais que se valem das mesmas armas — vídeos e posts — para prestar um alerta a consumidores, desmentindo propagandas enganosas e tentando salvá-los de enrascadas que podem prejudicar até a saúde. A bióloga Mari Krüger (950 000 seguidores) se tornou referência ao desvendar, por meio de pesquisas científicas, a ineficácia de produtos como gomas para melhorar o sono e expedientes bizarros para diminuir a barriga. “Entendo que fazer publicidade de qualquer coisa assim envolve muito dinheiro, mas prefiro ter uma relação de respeito com quem me segue e tenho orgulho do que eu faço”, diz a gaúcha. Guga Figueiredo (560 000 seguidores), criador de conteúdo fitness, já atacou Jenny Miranda, Virginia Fonseca e Juju Salimeni por compartilharem “publis” enganosas. “O mercado carece de profissionais que mostrem a verdade e ajudem os seguidores a não cair em pilantragens”, defende o profissional fluminense. Tomara mesmo que o bom senso se imponha no circo digital. Está mais do que na hora de descurtir as péssimas influências.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881