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Daniela Thomas faz bela estreia solo em “Vazante”

Com visual belíssimo, o filme conta uma história do século 18, que a cineasta ouviu de seu pai, Ziraldo

Por Mariane Morisawa, de Berlim
11 fev 2017, 14h13

Daniela Thomas gosta de trabalhar em parceria. Foi assim que codirigiu Terra Estrangeira (1996), O Primeiro Dia (1998) e Linha de Passe (2007), com Walter Salles, e Insolação (2010), com Felipe Hirsch. Mas ela, que não é de ter os próximos projetos na ponta da língua, cultivava havia muitos anos uma ideia. “Foi uma história contada por meu pai”, disse ao site da VEJA, referindo-se ao cartunista e escritor Ziraldo. Girava em torno de um homem de meia idade que não gostava de usar sapatos e se casou com uma menina de 12 anos, dando-lhe bonecas até que seu corpo de criança estivesse pronto a gerar filhos. Ainda assim, precisou de um empurrãozinho de Beto Amaral, que produziu Insolação. Ele a pressionou para produzir seu primeiro projeto individual no cinema. Juntos, acabaram escrevendo o roteiro e dando forma àquilo que era apenas vontade. Assim nasceu Vazante, exibido na mostra Panorama do 67º Festival de Berlim.

Em 1821, às vésperas da independência do Brasil, António (Adriano Carvalho) é um tropeiro português que gosta de colocar o pé na terra e que herdou da família da mulher uma fazenda cujos dias de glória ficaram para trás. Os diamantes não estão mais lá. Ao chegar de uma de suas longas viagens, descobre que a mulher e o filho que esperava morreram no parto. Homem de poucas palavras, António parte, tentando curar a dor sabe-se onde. Ficam na fazenda seus escravos, inclusive um grupo novo e rebelde que não fala banto, a língua dos outros. Jeremias (Fabrício Boliveira), negro alforriado já nascido no Brasil, fica encarregado de colocá-los na linha, ao mesmo tempo em que ensina os outros a cultivar a terra, em vez de garimpar. Enquanto isso, o cunhado de António, Bartholomeu (Roberto Audio), numa situação modesta depois do casamento da irmã, e é pressionado pela mulher, Dona Ondina (Sandra Corveloni), a aceitar uma mudança para a cidade. Estão numa posição desconfortável, sendo obrigados a aceitar quando António propõe se casar com a filha mais nova do casal, Beatriz (Luana Nastas), de apenas 12 anos.

O filme aposta numa estrutura narrativa arriscada, em que o protagonista some de vez em quando, dando espaço a outros personagens e grupos e, no fundo, ao lugar. “Pensei muito num folhetim, como os de José de Alencar”, disse Daniela Thomas. Mas os tempos são alongados, buscando reproduzir o lento passar das horas na época, quando viajar significava perder contato com seu mundo durante semanas ou meses. Só depois de mergulhar o espectador nesse universo, Daniela Thomas usa os elementos comuns dos folhetins, das novelas, com um crescendo no drama que termina com choque.

Tal estrutura narrativa exige do espectador e não funciona sempre, principalmente para quem espera um desenvolvimento mais profundo dos personagens. O filme, de poucas palavras, deixa muitas lacunas. É melhor pensar nele como um retrato de um lugar em transição e de uma época, cujos reflexos ainda são percebidos no Brasil de hoje. “Sempre gostei de história”, explicou a diretora. “É impressionante como algumas coisas se mantêm, como a estrutura patriarcal”, completou. Uma das cenas mais impressionantes é quando António faz uma visita de surpresa à casa de Bartholomeu e, enquanto os homens comem à mesa, as mulheres ficam sentadas nos cantos, nas sombras.

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Em compensação, “Vazante” é em termos visuais o filme mais deslumbrante do Festival de Berlim até agora. Mas sem exibicionismo, com razão de ser. Daniela Thomas quis rodar em preto e branco para não dar margem a qualquer discussão sobre a autenticidade ou opiniões sobre a palheta de cores – a fotografia belíssima de Inti Briones capta a natureza rude que quer expulsar aquelas pessoas dali. “Queria que fosse o mais realista possível”, disse a diretora. A ideia perpassou toda a produção, da escolha da fazenda original do século 18, cercada de montanhas, até a construção das casas da senzala. “Jamais imaginei que ia encontrar essas locações”, contou Daniela.

O elenco negro foi composto por pessoas das comunidades quilombolas da região Diamantina, bem como de refugiados da África Subsaariana de São Paulo, indicados pelo ator Toumani Kouyate. As roupas criadas pelo figurinista Cassio Brasil foram todas feitas a mão. A direção de arte de Valdy Lopes Jr. não tenta embelezar nada artificialmente. O som feito pelo português Vasco Pimentel abdica da música e é feito de zumbidos de insetos, canto de pássaros, badalar dos sinos do gado e, principalmente, do ranger dos carros de boi. “Fiquei emocionada de poder usá-los, porque para mim seu som é tipicamente brasileiro”, disse Daniela Thomas, lembrando que também faz parte da história do cinema nacional, como na abertura de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos.

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