Quando o alemão Johan Wolfgang von Goethe publicou Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, em 1795, a literatura não ganhou apenas um grande romance. Ela se transformou irremediavelmente. Desde os poemas épicos da Antiguidade, os heróis da narrativa do Ocidente sempre foram adultos — Aquiles, Ulisses, Enéas parecem todos ir pelo meio da existência. Com Wilhelm Meister, Goethe traz à cena um jovem buscando seus caminhos na vida, enfrentando as durezas e as delícias das escolhas e das oportunidades. Em suma, um jovem em formação. Nascia, assim, o Bildungsroman, expressão germânica que se popularizou nos meios literários e que significa “romance de formação”. Não é uma façanha pequena: outro tipo de herói ingressava na corrente literária, um personagem para quem a vida era uma exploração incerta do mundo social burguês. Era o herói por excelência da modernidade.
O Romance de Formação, do teórico italiano Franco Moretti, publicado originalmente em 1987 e agora no país, é mais que um abrangente estudo sobre esse gênero romanesco. Trata-se de uma obra-prima da teoria literária. De Goethe a Thomas Mann, passando por Jane Austen, Stendhal, Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Charles Dickens e George Eliot, o estudo de Moretti analisa o gênero que legou personagens como Elizabeth Bennet, de Orgulho e Preconceito, e Frédéric Moreau, de A Educação Sentimental. Com erudição, rigor e escrita fluente, Moretti compõe um vasto quadro da experiência histórica de um período que se estende de meados do século XVIII à primeira metade do século XX e coincide com as expansões do capitalismo moderno. Trata-se de um mundo de transformações intensas, velozes e imprevisíveis, que trazem demandas psicológicas e sociais frenéticas.
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É assim para Wilhelm, o herói de Goethe que se recusa a fazer o que todos os jovens tinham feito até então. Até ali, a passagem da juventude à vida adulta era a repetição das gerações anteriores: assumir os negócios da família, seguir determinações do pai, atender a expectativas convencionais. Wilhelm, porém, dedica-se ao amor à arte, ao teatro; entrega-se apaixonadamente a Shakespeare e a uma vida que rechaça todos os convencionalismos de sua classe abastada. Não por uma dissipação, mas para educar-se nos caminhos da vida e das emoções humanas. “Lembre-se de viver!” será como que um lema.
O que os clássicos da educação para a vida do jovem burguês apresentam não é uma revolta sob a forma do desregramento. O que se descortina, para todos esses personagens, é a grande abertura do mundo, tanto interior e subjetivo quanto externo e objetivo: ao contrário do que ocorria antes, a dedicação ao trabalho, à vida social e à vida familiar não é um movimento harmônico. Ela cobra seu preço sobre a liberdade individual. Os personagens do romance de formação buscam a plena realização, e ao menos em alguns casos o casamento desponta como final feliz, coroando o amadurecimento. É o que se vê na trajetória de Elizabeth Bennet, em Orgulho e Preconceito (1813), de Jane Austen. Muito além da sempre cativante história de amor, o processo de educação das emoções e da inteligência de Elizabeth assinala a abertura para a felicidade possível. Não há sonhos deixados para trás ao se tornar uma mulher madura, ao abraçar o amor, o casamento e o pertencimento social.
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Com argúcia, Moretti mostra como essa disposição para o equilíbrio entre o ideal de autodeterminação e as exigências da socialização ocorreu no romance alemão e inglês — mas não no francês. No caminho de Goethe e Austen, afinal, não havia uma revolução e sua guilhotina, com toda a cisão social e política que ambas implicavam na França de Stendhal e Balzac. Stendhal concentra seu espetacular O Vermelho e o Negro (1830) nas consequências fatais da impossibilidade de realização para seu protagonista, Julien Sorel. E é nesse espírito que Balzac registrará a decepção desse tipo de personagem. Em As Ilusões Perdidas (1837), seu protagonista, Lucien Chardon, é o típico provinciano sedento do triunfo na capital parisiense — e acaba por descobrir que tudo era ilusório. Apropriadamente, o fim do grande romance de formação foi francês. Quando Flaubert afirmou que queria escrever “a história moral dos homens de sua geração”, referia-se àqueles que, como ele, nutriram os ideais do romantismo. O herói de A Educação Sentimental, Frédéric Moreau, condensa esses valores, da paixão por uma mulher inacessível às ambições políticas. Contudo, não há mais amadurecimento possível, e o peso das palavras finais de Moreau, encontrando em um banal episódio de juventude “o melhor que fomos”, corta friamente a carne ainda hoje. Para deleite dos leitores, esses personagens se conservam eternamente jovens.
Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681
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