Na virada do milênio, um ano depois do lançamento do primeiro filme da trilogia Matrix (1999), o então diretor Larry Wachowski engatou no processo de transição de gênero para assumir sua nova identidade: Lana Wachowski. Foi só em 2012, no entanto, que a cineasta passou a falar abertamente sobre sua transexualidade e se tornou uma das primeiras figuras a dar visibilidade ao “T” da sigla LGBT no cinema. Em 2016, foi a vez da irmã Lilly se assumir como mulher trans. A popular assinatura entre os filmes de ação “irmãos Wachowski” foi adaptada para o neutro “The Wachowskis”.
Mais de 20 anos depois da estreia da trilogia que as consagrou no cenário cinematográfico, Lilly confirmou recentemente a teoria de que Matrix seria, na verdade, uma alegoria sobre aceitação e transição de gênero. “Fico feliz que tenham descoberto que essa era nossa intenção original. É uma história sobre o desejo de transformação”, disse Lilly em entrevista ao canal do YouTube da Netflix na semana passada, “mas o mundo corporativo não estava pronto para que admitíssemos isso na época”. A teoria foi resumida de forma didática em um artigo da revista americana Vulture: “Neo (Keanu Reeves) tem disforia de gênero. A Matrix é a binaridade de gênero. Os agentes são a transfobia.”
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Clique e AssineDestrinchado por fãs ao longo de décadas, Matrix oferece um cardápio farto de referências, que vão do Mito da Caverna de Platão, passando pela Bíblia, até Alice no País das Maravilhas. A nova camada de significado da amada trama da ficção científica foi aplaudida por muitos, e rechaçada por outros tantos, que usaram as redes para criticar a virada, chamando a teoria de reducionista e de jogada de marketing. Na discussão, quem sai vitorioso é o próprio filme: apesar do passar dos anos, Matrix continua a provocar, provando ser uma trama adaptável, que se recusa a ficar datada.
Matrix não está sozinho no bonde dos filmes maleáveis à novas interpretações. Stan Lee (1922-2018), criador dos super-heróis X-Men, confessou em entrevista à Rolling Stones americana que a trama da Marvel é uma alegoria para a luta dos negros por direitos civis nos Estados Unidos, na década de 1960. Como paralelos, o Professor Xavier seria uma versão de Martin Luther King, e seu sonho de uma convivência pacífica entre humanos e mutantes, o equivalente ao famoso sonho do líder americano. Já Magneto, com sua austera defesa da espécie mutante, refletiria a filosofia de Malcolm X. Nos últimos anos, os X-Men e sua defesa pelos diferentes acabaram abraçados pela comunidade LGBT.
O terreno dos super-heróis é fértil para essas associações. Outro exemplo da ficção ressignificada é Superman. Na história do super-herói, o menino, inicialmente nomeado de Kal-El, chega aos Estados Unidos na década de 1930 quando sua nave espacial, vinda do planeta Krypton, despenca em uma comunidade rural do Kansas. Encontrado pelo casal Martha e Jonathan Kent, foi rebatizado Clark Kent, embora o nome americanizado não o tenha impedido de sofrer bullying por ser “diferente” dos demais. Ou seja, em termos gerais, o grande Super-Homem nada mais é que um imigrante ilegal nos Estados Unidos.
Em 2017, o presidente americano Donald Trump encerrou o programa Deferred Action for Childhood Arrivals (DACA), o qual permitia que imigrantes que entraram nos Estados Unidos como menores de idade recebessem uma espécie de visto, renovável a cada dois anos, para trabalhar e continuar no país. Coincidentemente ou não, uma semana depois do controverso anúncio, a revista em quadrinhos Action Comics – da editora americana DC Comics e a publicadora de Superman desde 1938 – lançou uma nova história do super-herói. Na edição 987, ele protege um grupo de imigrantes ilegais de um homem que exibe um lenço com a bandeira dos Estados Unidos na cabeça e uma metralhadora. Superman evita um massacre ao desviar todas as balas disparadas contra o grupo e ainda protagoniza um dramático diálogo. Quando o nacionalista culpa os imigrantes por terem lhe tirado o emprego e diz que foi “arruinado” por eles, o super-herói responde: “A única pessoa responsável pela escuridão sufocando a sua alma é você!”
Até Game of Thrones ganhou uma análise atrelada aos dias de hoje por parte de seus fãs. A disputa sangrenta pelo trono de Westeros seria, na verdade, uma alegoria sobre o aquecimento global. Em entrevista ao jornal The New York Times, o autor dos livros que inspiraram a série, George R. R. Martin, confirmou que é possível traçar um paralelo entre a famosa frase “o inverno está chegando” com os perigos ambientais enfrentados na vida real. “As pessoas em Westeros estão lutando suas batalhas individuais por poder, status e fortuna. E essas questões fazem com que ignorem a verdadeira ameaça ‘o inverno está chegando’, que tem o potencial de destruir todos eles”, disse.
Embora a ficção seja apenas isso, “ficção”, ela é também um reflexo constante e adaptável da realidade. E que assim continue a ser.