Último Mês: Veja por apenas 4,00/mês

APURAÇÃO DAS ELEIÇÕES 2024

Continua após publicidade

Documentos inéditos obtidos por VEJA revelam cotidiano de João Gilberto

O recluso, temperamental e genial artista morreu em 2019

Por Sofia Cerqueira Atualizado em 4 jun 2024, 13h11 - Publicado em 26 mar 2021, 06h00
CANTAROLANDO - João, na poltrona vermelha: ele morreria 23 dias depois -
CANTAROLANDO – João, na poltrona vermelha: ele morreria 23 dias depois – (Gustavo Carvalho Miranda/.)

Uma espessa aura de mistério sempre envolveu a intimidade de João Gilberto. Ermitão convicto, o criador da bossa nova deu linha a um novelo infindável de histórias curiosas e passagens pitorescas em torno da sua vida pessoal e profissional. Passava dias inteiros dedilhando uma mesma música em busca da perfeição, não concedia entrevista, não saía de casa e só permitia que pouquíssimas pessoas entrassem em seu mundo peculiar. No rol de privilegiados que conviveram com o genial — e genioso — artista, mesmo que por um curto período, inclui-se o advogado Gustavo Carvalho Miranda, de 39 anos, que teve essa chance ao ser contratado para defender os interesses de João Marcelo, primogênito do cantor baiano, nos imbróglios que puseram a família em pé de guerra no fim de sua vida. Miranda contou a VEJA que João Gilberto simpatizou com ele, o recebeu em frequentes visitas no célebre apartamento no Leblon e, quatro dias antes de morrer, aos 88 anos, em 6 de julho de 2019, lhe deu de presente uma pasta preta apinhada de documentos e papéis pessoais que abrem uma valiosa janela para o inviolável cotidiano do músico. “Guardei a pasta no meu escritório e só em janeiro passado fui olhar o material detalhadamente. Quase caí para trás com a preciosidade que tinha nas mãos”, diz o advogado.

RETRATOS DO PASSADO - Guardados da pasta preta em torno da turnê nos EUA e na Europa em 1998, nos quarenta anos da bossa nova (da esq. para a dir.): “cola” com a lista das músicas, duas delas escritas de próprio punho; contabilidade de cachês assinada por John Phillips, do JVC Jazz Festival; a conta de hotel na Itália com altos gastos em telefonemas; e o fax enviado ao produtor George Wein, que organizou a turnê -
RETRATOS DO PASSADO – Guardados da pasta preta em torno da turnê nos EUA e na Europa em 1998, nos quarenta anos da bossa nova (da esq. para a dir.): “cola” com a lista das músicas, duas delas escritas de próprio punho; contabilidade de cachês assinada por John Phillips, do JVC Jazz Festival; a conta de hotel na Itália com altos gastos em telefonemas; e o fax enviado ao produtor George Wein, que organizou a turnê – (./Reprodução)

Na pasta, organizadíssima — o que faz crer que não tenha sido arrumada por João Gilberto, conhecido pela cabeça de vento para questões corriqueiras —, estão registros que cobrem duas décadas, de 1978 a 1998. Um deles é o original de um fax de trabalho acrescido de mensagem pessoal que ele enviou a George Wein, famoso produtor de jazz que promoveu uma turnê sua pelos Estados Unidos e Itália em 1998, quando foram comemorados os quarenta anos da bossa nova. Dobrado diversas vezes, outro papel é uma “cola” usada no palco com a sequência das músicas a serem interpretadas, duas delas — S’Wonderful e Este Seu Olhar — anotadas de próprio punho. “Ele não gostava de escrever e um documento com sua caligrafia é uma raridade. Só o vi dar autógrafo uma vez na vida”, conta o empresário Krikor Tcherkesian, que trabalhou com o músico por vinte anos. No baú de memórias herdado pelo advogado Miranda encontra-se ainda uma descrição de seus cachês. Assinado por John Phillips, presidente do JVC Jazz Festival, o papel atesta que, em 1998, ele recebeu 110 000 dólares por quatro shows em cidades italianas, bem como o adiantamento (45 000 dólares) por uma apresentação no Carnegie Hall, em Nova York — templo da música que o catapultou para a fama, em 1962. “Pela escassez de vestígios deixados por João, qualquer objeto que pertenceu a ele tem um valor histórico enorme”, avalia o produtor musical Nelson Motta.

Embora no decorrer da vida tenha ficado cada vez mais ensimesmado, o gênio recluso cultivava um punhado de amigos — a maioria a distância — no Brasil e mundo afora. No meio da papelada inédita contida na pasta, Miranda achou uma carta escrita por Jorge Amado, com rodapé redigido pela mulher dele, Zélia Gattai. Nela, o escritor lamenta um desencontro havido em Nova York — João Gilberto, sendo João Gilberto, se atrasou —, diz que vai incluir um texto sobre ele em uma edição de Bahia de Todos os Santos e demonstra afeição por “meu filho Joãozinho”. Zélia ratifica: “Temos dois filhos João (um deles, o próprio filho) que nos dão sempre muita alegria”. Um segundo achado traz à tona mais um elo famoso, este menos provável: o certificado de autenticidade de uma luva de boxe — a peça era guardada em uma caixa pelo músico — de Muhammad Ali, o maior de todos. A fixação por lutas na TV, aliás, era uma de suas excentricidades. Outra mania, a de se pendurar durante horas ao telefone, seu meio preferencial de comunicação, fica evidente em uma conta de hotel, em Milão, de 1998. Uma única ligação custou 2 250 000 liras, o equivalente a 7 700 reais. Junto à nota estavam crachás de backstage, faxes citando pendengas no imóvel alugado do Leblon — enfrentou três ações de despejo — e recibos de compras no exterior. Nesse bolo há gastos da moçambicana Maria do Céu Harris, com quem conviveu entre idas e vindas por mais de trinta anos, como a aquisição de uma bolsa Louis Vuitton, em 1996, em Roma, pelo equivalente a 15 000 reais em valores de hoje. “Quando ele ganhava muito, gastava muito. Não havia limite”, lembra outro antigo amigo, o diretor musical Aquiles Franzotti.

Continua após a publicidade

As relíquias do gênio maior da bossa nova chegaram às mãos de Miranda, que já não advoga para João Marcelo, em 2 de julho de 2019, segundo relato dele próprio. Àquela altura, o filho do músico, que vive nos Estados Unidos, e a irmã (apenas por parte de pai) Bebel Gilberto viviam às turras por ele discordar da interdição do artista, providenciada por ela, e se sentir alijado das decisões. A cantora, que também morou muito tempo fora do país e hoje está radicada no Rio, conseguiu a curatela provisória do pai em 2018, após uma visita em que o encontrou, segundo seu relato, em situação de penúria, magérrimo, vivendo em um ambiente degradante. Com a missão de acompanhar o processo de perto, Miranda se aproximou de João Gilberto em seus últimos quatro meses de vida. Na data em que conta ter sido presenteado com a pasta, havia acompanhado o artista em uma perícia neurológica. “Ele estava lúcido, mas tinha lapsos, como qualquer pessoa de idade. Na frente de desconhecidos, ficava travado”, afirma.

ESPAIRECENDO - João Gilberto, com Miranda, em restaurante carioca: jantar regado a vinho português, o seu preferido -
ESPAIRECENDO – João Gilberto, com Miranda, em restaurante carioca: jantar regado a vinho português, o seu preferido – (Arquivo pessoal/.)

Naquele dia, o levou para comer frutos do mar e tomar vinho português — seu preferido — em um restaurante carioca à beira-mar. Em suas visitas à casa do pai da bossa nova, lembra que ele falava da saudade da primeira mulher, Astrud, e da vontade de voltar a “viver na América”. Sentado numa poltrona vermelha, cantarolava clássicos como Bim Bom e Samba de Uma Nota Só. “Tenho a impressão que ele me deu os papéis como agradecimento por termos ficado próximos”, diz Miranda. “Penso, no futuro, em talvez doar a uma instituição. Mas não para a família dele, onde ninguém se entende”, acrescenta.

PROVAS DE AMIZADE - Lembranças de um artista famoso pela atitude antissocial, que, mesmo assim, cultivou boas relações a distância, seja por correspondência, seja por longos telefonemas: na pasta, há uma carta escrita por Jorge Amado, lamentando um encontro perdido e manifestando afeto pelo “meu filho Joãozinho” (à esq.), e o comprovante de autenticidade de uma luva de boxe, esporte que não perdia, do campeão Muhammad Ali, que tanto admirava -
PROVAS DE AMIZADE – Lembranças de um artista famoso pela atitude antissocial, que, mesmo assim, cultivou boas relações a distância, seja por correspondência, seja por longos telefonemas: na pasta, há uma carta escrita por Jorge Amado, lamentando um encontro perdido e manifestando afeto pelo “meu filho Joãozinho” (à esq.), e o comprovante de autenticidade de uma luva de boxe, esporte que não perdia, do campeão Muhammad Ali, que tanto admirava – (./Reprodução)

Desde a morte de João Gilberto, os herdeiros travam uma acirrada disputa na Justiça. O próximo round acontecerá em algumas semanas, quando Maria do Céu, que o conheceu em Lisboa durante um show em 1984 e passou a maior parte da vida sendo sustentada pelo músico, entrará com uma ação pedindo que seja invalidada a revogação de um testamento dele de 2003 no qual, além de Bebel e João Marcelo, ela era beneficiária de 30% do patrimônio. Catorze anos depois, acompanhado de Claudia Faissol — com quem teve uma filha, Luisa, de 16 anos —, João Gilberto desfez a divisão de bens. O argumento usado por Maria do Céu é de que isso aconteceu em um momento em que o artista já vacilava na lucidez. No fim de 2019, cinco meses após a morte dele, Céu, que ainda ocupa o apartamento de João Gilberto (ela pode ser despejada a qualquer momento por aluguéis atrasados, de cerca de 200 000 reais), também ingressou na Justiça pedindo o reconhecimento da união estável. Procurado, seu advogado, Roberto Algranti Filho, não quis falar.

Algranti solicitou recentemente à Justiça que os nove violões do cantor, de posse de Maria do Céu, fossem cedidos em comodato a uma instituição cultural, o que foi negado. No enrosco patrimonial estão em jogo diversos objetos, mas a pendenga maior gira em torno de direitos autorais. “Depois de muitas desavenças, os advogados dos três filhos estão trabalhando juntos em prol de um só interesse: a obra do João”, afirma Deborah Sztajnberg, que defende agora o primogênito. A família terá ainda que aparar arestas com o banco Opportunity, dono de 50% de uma indenização multimilionária devida aos herdeiros pela gravadora EMI. Enquanto a disputa pelo que é de quem se desenrola, a pasta preta agora aberta dá sua contribuição para preservar a memória do mestre da bossa nova.

Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Veja e Vote.

A síntese sempre atualizada de tudo que acontece nas Eleições 2024.

OFERTA
VEJA E VOTE

Digital Veja e Vote
Digital Veja e Vote

Acesso ilimitado aos sites, apps, edições digitais e acervos de todas as marcas Abril

1 Mês por 4,00

Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (equivalente a 12,50 por revista)

a partir de 49,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$118,80, equivalente a 9,90/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.