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Dramas de imigrantes e refugiados ganham ressonância em séries na TV

Uma safra de produções trata do tema de forma original e contundente

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h57 - Publicado em 31 jan 2020, 06h00

Iwegbuna Ikeji é um jovem nigeriano expansivo (até demais) que se muda para os Estados Unidos na década de 80 com o intuito de cursar a Universidade de Oklahoma. Ele, porém, não vê a hora de voltar para casa e comer o que chama de “comida de verdade” — Ikeji odeia hambúrgueres. O desdém dos colegas de classe desperta nele a necessidade de se misturar. Ikeji então adquire um chapéu de caubói e botas de couro, emulando os astros de faroestes que desenharam em sua mente a imagem idealizada do herói americano. É risível e adorável o esforço de adaptação do rapaz — e melancólica a saudade que ele sente do lar. Os planos de rever a família são adiados quando Ikeji passa do status de estudante ao de refugiado: um golpe militar impede seu retorno à terra de origem.

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O personagem — interpretado pelo ator e músico nigeriano Conphidance — é o protagonista de uma das oito histórias reais de imigrantes retratadas na série Little America, o mais recente e o melhor título da novata Apple TV+, plataforma de streaming do gigante de tecnologia. Ao tocar em tópicos delicados com elegância e bom humor, o programa oferece entretenimento da melhor cepa. Os episódios curtos captam desde os apuros de um garotinho indiano que precisa se virar quando os pais são deportados até a ansiedade de um gay sírio em busca de asilo no país de Donald Trump.

Little America é parte de uma tendência que exibe força na TV: as séries voltadas para a vida e para os padecimentos dos imigrantes e refugiados modernos. Obviamente, a figura do estrangeiro obrigado a recomeçar longe da pátria, em qualquer tempo ou lugar, não é novidade na TV — basta lembrar a ancestral Roots (por aqui, Raízes), produção de 1977 que falava da adaptação de um jovem africano levado aos Estados Unidos para virar escravo, no século XVIII. De três anos para cá, o tema ampliou sua presença não só em quantidade, mas, principalmente, em qualidade — e contundência. Desde a eleição de Trump, com sua plataforma estridente contra os imigrantes, e a explosão do drama dos refugiados na Europa, as séries tornaram-se uma tribuna de defesa das pessoas nessa situação.

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ADAPTAÇÃO -‘Little America’: nigeriano vê no figurino dos caubóis americanos a chance de se adequar aos Estados Unidos (Apple TV/.)

Há 272 milhões de imigrantes no mundo, 44,5 milhões deles vivendo nos Estados Unidos legalmente — em comparação a 11,3 milhões em situação ilegal. A teledramaturgia atual ilumina o drama dessa massa de expatriados em todas as gradações. Little America faz um bem-sucedido esforço de humanização dos imigrantes nos Estados Unidos. A popular One Day at a Time vai na mesma linha ao se valer do humor despretensioso das sitcoms para celebrar uma família cubana instalada em Los Angeles — e alfinetar, com sutileza, as políticas de Trump. No outro extremo estão as séries que não hesitam em ir para o ataque frontal. Messiah, novo fenômeno da Netflix, usa conceitos bíblicos para expor a hipocrisia na crise humanitária no Oriente Médio. Quando conduz uma multidão de palestinos pelo deserto até a ultraprotegida fronteira de Israel, o herói que seria o novo Messias proclama: “Esta é uma terra de união”. A abordagem mais agressiva surge em Entre Dois Mundos (The Crossing). A série do canal ABC, recém-lançada no Globoplay, transforma os americanos em refugiados. Trata-se de uma visão distópica: nos Estados Unidos de hoje, resgatam-se cidadãos que vieram do futuro em busca de abrigo, depois que o país teria sido dominado por uma raça superior de pendor nazista. “Essa é a antiga América, que recebe a todos”, diz um rapaz do ano 2200 ao chegar à costa americana em 2018.

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PROVOCAÇÃO – ‘Messiah’: fronteiras de Israel são postas em xeque pela série (Hiba Judeh/Netflix)

As novas séries não apenas põem a realidade de imigrantes e expatriados em relevo inédito: inauguram também uma forma de retratá-los sintonizada com a correção política. A mais militante delas nesse quesito é One Day at a Time. A primeira temporada da sitcom chegou à Netflix a duas semanas da posse de Trump, em janeiro de 2017. O programa é um remake de uma sitcom de mesmo nome de 1975. Com uma baita diferença: a família original era americana. Na nova versão, Penélope (Justina Machado) divide um apartamento com os filhos e sua mãe, a cubana Lydia (Rita Moreno), que fugiu com o marido da Cuba de Fidel Castro. A partir da segunda temporada, a família convive com o fantasma de Trump nas entrelinhas. Em um ponto, a neta de Lydia se desespera ao descobrir que a abuelita não tem cidadania americana — sua melhor amiga teve os pais mexicanos deportados por isso. Os cubanos, porém, são beneficiados por uma legislação que facilita a permanência no país. A jovem é ciente disso, mas insiste: “Estão, sim, deportando cubanos”. “Não faz sentido, deveriam estar nos importando”, afirma a avó, com elevada autoestima. Após três temporadas, One Day at a Time foi cancelada pela Netflix, mas a pressão dos fãs levou o canal Pop TV a ressuscitá-la. A aguardada volta será em março.

Curiosamente, até bem pouco tempo atrás imigrantes em solo americano se resignavam ao papel de alívio cômico nas séries. É o caso do indiano Apu, de Os Simpsons. Recentemente, o personagem perdeu o dublador, que deixou o programa após o público criticar o trato estereotipado. Outro indiano, o Raj (Kunal Nayyar) de The Big Bang Theory, passou por mudanças de comportamento e até perdeu o cabelo alisado nas últimas temporadas. Os imigrantes, enfim, deixaram de ser motivo de riso por seu sotaque ou seus hábitos culturais. A não ser, claro, que a piada seja feita por eles próprios.

Publicado em VEJA de 5 de fevereiro de 2020, edição nº 2672

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