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Elenco relembra bastidores de ‘Tieta’, a novela que não envelhece

Temas como liberdade e repressão sexual, empoderamento feminino e hipocrisia da sociedade têm garantido a boa audiência da reprise no Viva

Por Heloísa Noronha
Atualizado em 17 Maio 2017, 10h07 - Publicado em 14 Maio 2017, 11h36
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  • A busca por vingança é um recurso dramático que nunca perece. Afinal, quem nunca imaginou secretamente, mesmo que por um lampejo, dar o troco em quem o prejudicou? Esse é mote de uma das obras-primas do teatro, A Visita da Velha Senhora, de 1956, escrita pelo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990). Seduzida e abandonada na adolescência, Claire Zahanassian parte da pequena Güllen destruída e humilhada. Após construir uma fortuna à base da prostituição e de um casamento milionário, retorna à cidade mais de 40 anos depois para castigar seus malfeitores. O texto de Dürrenmatt é apontado como inspiração para Tieta do Agreste, livro de Jorge Amado (1912-2001) publicado em 1977. O ponto de partida é o mesmo, mas a história brasileira se passa no sertão baiano, e é apimentada com ingredientes típicos: mulheres brejeiras, beatas amargas, romances sensuais, disputas políticas e o eterno combate à hipocrisia calcada na moral e bons costumes.

    A obra teve boa repercussão, mas foi a adaptação para a Rede Globo em 1989 que conquistou os brasileiros. A novela foi reapresentada entre 1994 e 1995 no Vale a Pena Ver de Novo e vem sendo exibida desde 1o de maio no Viva. Desde o lançamento do canal, em 2010, Tieta era um dos folhetins mais pedidos pelos assinantes. Não é à toa que atingiu a maior audiência de estreia em seus dois horários de exibição (15h30 e 0h30) e ganhou uma maratona com os capítulos da semana aos domingos, às 19h. Sob a batuta de Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares, Tieta conquistou o país com seus personagens fortes (especialmente os femininos) e irreverentes, os cenários paradisíacos de uma fictícia Santana do Agreste, bordões divertidos e conflitos interessantes.

    Sinopse escrita às pressas

    Claudia Ohana na novela Tieta, da Rede Globo.
    Claudia Ohana na novela Tieta, da Rede Globo. (Oscal Cabral/Dedoc)

    Quem teve a chance de ver os primeiros capítulos nem imagina que a novela teve de ser produzida às pressas. Prevista para substituir O Salvador da Pátria, que ocupava a faixa nobre da grade da Globo, Barriga de Aluguel foi vetada por Boni (José Bonifácio Sobrinho, na época o diretor-geral da emissora) por mostrar temas muito controversos – curiosamente, a novela foi exibida em 1990 no horário das 18h e fez enorme sucesso. A ideia era levar ao ar uma produção mais leve e divertida. “Tive apenas dois meses para elaborar a sinopse e escrever os primeiros capítulos”, relembra Aguinaldo Silva. “Para que a história rendesse uma novela, tive de inventar novos personagens, aumentar a ação de alguns e desenvolver núcleos que o Jorge apenas havia esboçado.”

    Segundo Betty Faria, apaixonada pela personagem, foi ela própria quem negociou a compra dos direitos autorais com o escritor. A estrela da trama, porém, só surgiu plena e absoluta no enredo depois de dezoito capítulos no ar. O motivo não era bem dramatúrgico: ela era uma das protagonistas de O Salvador da Pátria. A cidade cenográfica de Santana de Agreste foi construída a toque de caixa e só ficou pronta depois que a novela já estava em exibição. “É por isso que as primeiras cenas são mais fechadas. Na sequência épica em que Osnar (José Mayer), montado num cavalo, anuncia à população a volta de Tieta, só vemos a parte de cima de seu corpo para dar a impressão de que está em um lugar aberto”, diverte-se Aguinaldo.

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    José Mayer e Betty Faria em ‘Tieta’ (Acervo Globo/Divulgação)

    As famosas tomadas nas dunas de Mangue Seco, que tornaram a singela cidade de pescadores um dos mais procurados pontos turísticos do sul da Bahia, também só foram gravadas tempos depois. “Hoje o acesso é mais tranquilo, mas na época a viagem para lá era complicadíssima. Tínhamos de pegar avião, ônibus, balsa… Era uma aventura”, diz a figurinista Helena Gastal, responsável pela criação do visual emblemático (e espalhafatoso) de Tieta, Perpétua (Joana Fomm) e companhia.

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    O processo de criação soa artesanal hoje. “Eu trabalhava numa máquina de escrever elétrica da Olivetti, o que já era um luxo. Para não correr o risco de perder os capítulos escritos, eu datilografava usando papel carbono para fazer cópias”, lembra Ricardo Linhares, que estreou como co-autor em Tieta. Sem teleconferência, era preciso que a equipe de autores se encontrasse pessoalmente. “Nos reuníamos toda segunda-feira, juntamente com a pesquisadora de texto, Márcia Prates, num apart-hotel que a Globo alugava na Barra. Nessas reuniões, nós bolávamos as tramas que recheariam os seis capítulos da semana. Aguinaldo fazia as escaletas, que são o arcabouço de cada episódio. E cada um de nós escrevia dois capítulos completos”, conta.

     

    Marco em várias carreiras

    Ingra Liberato e Claudia Ohana na novela
    Ingra Liberato e Claudia Ohana na novela “Tieta”, da Rede Globo. (Bazilio Calazans/Dedoc)

    Betty Faria já tinha encarado personagens marcantes na TV antes da versão adulta de Tieta (a jovem foi vivida por Cláudia Ohana), que retorna a Santana do Agreste mais de 25 anos depois de ser expulsa pelo pai, Zé Esteves (Sebastião Vasconcellos). Bons exemplos são a Lígia de Água-Viva (1980) e a Marluce da minissérie Bandidos da Falange (1983). “Fazer a Tieta, porém, foi uma experiência maravilhosa. Ela me deu muitas alegrias, pessoal e profissionalmente”, diz. O visual extravagante da ex-cafetina – joias reluzentes, roupas justas, estampas de onça, cores fortes e unhas enormes – se tornou tendência na época e Betty chegou a lançar a linha Tieta by Betty Faria.

    Se Tieta ofuscava com sua luz, Perpétua, sua irmã mais velha, era uma espécie de criatura das sombras. Viúva, vestia-se apenas de preto e esbanjava rancor, ressentimento, recalque e mau humor. Ou seja, tinha todas as características para se tornar uma das vilãs mais odiadas da televisão, mas o talento de Joana Fomm a transformou num ícone querido dos espectadores. “Eu ria muito quando lia o roteiro, porque a Perpétua era uma louca, e decidi dar a ela um tom cômico”, conta a atriz.

    Ao embrulhar Perpétua numa embalagem meio “circense”, segundo suas palavras, Joana não agradou muito ao diretor, Paulo Ubiratan (1947-1998). “A equipe técnica, porém, morria de rir, e também o público. E nada foi mudado”, conta Joana, que adorava ser reconhecida nas ruas. “A Perpétua não saía de casa sem seu guarda-chuva, lembra? E implicava muito com as crianças de Santana de Agreste. Uma vez, passeando pelo Leblon num dia de chuva, alguns meninos mexeram comigo me chamado de Perpétua. Não tive dúvida: saí correndo atrás deles, gritando como ela. Foi divertidíssimo! Sempre amei trabalhar para as pessoas”, recorda-se.

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    Para Joana, as cenas ao lado de Amorzinho (Lília Cabral) e Cinira (Rosane Gofman), duas beatas cujo furor sexual vivia reprimido, eram hilárias. E serviu para o Brasil se encantar com duas atrizes promissoras. “Cinira marcou definitivamente minha carreira. A partir dela, abriram-se várias portas. Engraçado foi como o tempo todo, nas ruas, alguém vinha me falar que conhecia uma Cinira”, fala Rosane, citando a personagem que tinha tremeliques quando pensava naquilo.

    Já Cássio Gabus Mendes lembra-se com carinho das cenas românticas de seu personagem, o seminarista Ricardo, filho de Perpétua, com a tia, Tieta. “As cenas nas dunas são lindas, antológicas”, derrete-se, referindo-se às sequências em que os dois transam pela primeira vez. “Ricardo era um personagem muito rico, dividido entre o desejo e a culpa. Gostei muito, ainda, das cenas em que ele reza ajoelhado no milho para se livrar da tentação representada pela tia. E, depois, do amor inocente vivido com a Maria Imaculada (Luciana Braga), que o enxerga como um príncipe”.

     

    Personagens e atores cativantes

    Paulo Betti na novela “Tieta”
    Paulo Betti na novela “Tieta” (Divulgação/TV Globo)

    Com atores veteranos de primeira linha distribuídos por núcleos secundários, Tieta desfilou uma galeria de tipos inesquecíveis como Dona Milu (Miriam Pires) e seu bordão “Mistééério!”, Timóteo (Paulo Betti) e a expressão “Nos trinques”, o falastrão Bafo de Bode (Benvindo Siqueira), a virgem Carmosina (Arlete Salles), a teúda e manteúda Carol (Luiza Tomé), Leonora (Lidia Brondi) e Ascânio (Reginaldo Faria). Grandes nomes como Cláudio Corrêa e Castro, Maria Helena Dias, Marcos Paulo e Elias Gleiser já se foram. Outro já finado, Armando Bógus, intérprete do infiel e ambicioso Modesto Pires, é um dos mais lembrados pelos colegas. “Ele era um amor de pessoa e um ator maravilhoso. Ter a oportunidade de contracenar com ele foi um prêmio”, emociona-se Bete Mendes, que encarnou Aída, a submissa e dócil esposa de Modesto.

    A saudosa Yoná Magalhães, na pele da sofrida Tonha, foi um desafio para a produção. No auge da beleza, a atriz teve de ser enfeada e envelhecida para depois surgir transformada. Como esquecer as imagens de Tonha, repaginada e esvoaçante, curtindo a liberdade pós-viuvez pelas dunas, ao som de Uma Nova Mulher, hit de Simone? A trilha sonora de Tieta, aliás, reunia o melhor da MPB da época, com artistas como Caetano Veloso, Tim Maia, Fagner e Fafá de Belém. Luiz Caldas, que interpretou a música-tema, conta que até hoje a canção é pedida em shows. “Tieta consolidou a axé music no cenário musical”, opina. A letra, vejam só, foi escrita sob medida para a novela pelo todo-poderoso Boni, em parceria com o compositor Paulo Debétio.

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    Sexo como motor

    Cássio Gabus Mendes e Betty Faria na novela
    Cássio Gabus Mendes e Betty Faria na novela “Tieta”, da Rede Globo. (Jorge Cysne/Dedoc)

    Na opinião de Aguinaldo Silva, os temas apontados no folhetim, embora controversos, não perderam o perfume de atualidade. É o caso do amor proibido entre Tieta e Ricardo, a hipocrisia submersa no fanatismo religioso e o empoderamento feminino. No entanto, o autor acredita que uma novela contemporânea com os mesmos assuntos poderia se tornar alvo de patrulha. “Já fomos mais livres”, diz.

    Para Ricardo Linhares, um personagem como o coronel Artur da Tapitanga, de Ary Fontoura, sofreria rejeição. Ele comprava meninas pobres dos pais, garantindo a elas casa, comida e alfabetização, e formava uma espécie de harém juvenil com as suas “rolinhas”. “Claro que nós tratamos a pedofilia de forma sutil. Não houve cena explícita. Mesmo assim, hoje essa história causaria gritaria.”

    A liberdade sexual e a autonomia de viver conforme os próprios princípios foi representada pelo casal Laura (Claudia Alencar) e Dário (Flávio Galvão), que em certo momento inicia uma relação a três com a liberal Silvana (Cláudia Magno). “A situação era tratada com naturalidade, de modo a esboçar um sorriso nos telespectadores”, lembra Flávio. “Eu amei interpretar a Laura, que era uma mulher sensual, alegre, liberada. Eles viviam um casamento muito sexual, o que é raro numa novela e mais ainda na realidade. A personagem mostrava ao público o quanto é importante se permitir experimentar as coisas na vida”, conta Claudia Alencar.

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    O retorno de Perpétua

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    Joana Fomm como Perpétua (Reprodução/Divulgação)

     

    Sempre à frente de seu tempo, e com o talento raro de investir no realismo fantástico para defender suas opiniões, Aguinaldo promete repetir o rebuliço e o êxito de Tieta em O Sétimo Guardião, cuja estreia está prevista para 2018. A história deve se passar numa cidadezinha fictícia inspirada em Delfim Moreira, interior paulista, que parece ter pa

    rado no tempo. “Lá não vai existir TV nem celular. Entretanto, em um certo lugar o sinal vai, sim, funcionar, o que permitirá várias possibilidades de ação para os personagens”, conta. Para alegria geral da nação, além de resgatar a impagável Nazaré Tedesco (Renata Sorrah) ele criou uma personagem que “lembra muito” Perpétua e que, obviamente, será interpretada por Joana Fomm. Será que, finalmente, teremos a chance de ver que a megera guardava na caixa? Mistééério.

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