Eliza Capai, do filme ‘Incompatível com a Vida’: ‘Eu nunca quis abortar’
Diretora de doc a respeito da dura escolha de interromper uma gravidez fala sobre a necessidade de se discutir francamente o tema tabu no país
Seu filme foi elogiado pelo The New York Times e está elegível para o Oscar. Como foi essa trajetória de transformar sua experiência pessoal em um documentário? Eu comecei a gravar como registro pessoal da gravidez. Até receber o diagnóstico de que o feto tinha uma malformação, que era incompatível com a vida, e não sobreviveria fora do útero. Não pensei que era possível ficar tão triste com a perda de um feto, mas era meu filho desejado e amado. Senti que tinha uma missão em registrar essa dor.
Algumas mulheres do filme com o mesmo diagnóstico optaram por levar a gravidez adiante, e outras buscaram a interrupção na Justiça. No seu caso, como foi essa decisão? Eu estava em Portugal, onde a interrupção é legal. Ele tinha catorze semanas quando descobri. Acho que cada mulher tem que ter o direito de decidir. Eu nunca quis abortar. Eu estava feliz com a gravidez. Depois, não conseguia me imaginar levando a gestação adiante. As semanas que passei sentindo aquele bebê crescendo, sabendo que ele iria morrer, foram enlouquecedoras.
Como é fazer o procedimento em um país onde o aborto é legalizado? O mais importante é que eu pude falar sobre isso. Se fosse um aborto clandestino, estaria confessando um crime. Brasileiras precisam enfrentar a ilegalidade, judicializar o caso ou são obrigadas a levar a gravidez adiante, além do julgamento social. Não passei por isso em Portugal, tive o apoio e o aconselhamento de médicos.
Como acha que teria sido por aqui? Difícil. Eu tinha uma condição prévia, voltei para casa e minha febre não passava. Fui internada novamente e naquele momento pensei que, se estivesse no Brasil, talvez eu morreria.
Por quê? Nos países onde o aborto é ilegal, há o medo de ser presa, assim mulheres não contam o que aconteceu. Se eu chegasse como cheguei a um pronto-socorro no Brasil e não falasse sobre o aborto, o tempo que se perderia talvez fosse tarde demais. O fato de que eu ainda tenho meu útero e minha vida é o maior desenho do que significa estar em um país com aborto legalizado.
É a favor da legalização em casos distintos do seu, que tinha um diagnóstico médico? Sim. Acho que só tem que nascer quem é desejado e amado. Estudos mostram que boa parte das mulheres que abortam são religiosas, mães e sem condições de ter outro filho. O direito à escolha é fundamental.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869