Enem: a história por trás de ‘Admirável Gado Novo’, de Zé Ramalho
Inspirada na distopia ‘Admirável Mundo Novo’, de Aldous Huxley, música foi tema de questão da prova – e logo apontada como crítica ao governo Bolsonaro
Em 1996, a canção Admirável Gado Novo, entoada por Zé Ramalho, foi redescoberta por novas gerações ao integrar a trilha da novela O Rei do Gado, sucesso de audiência do horário nobre da TV Globo. A faixa, que embalava o núcleo dos sem-terra do folhetim, já tinha sido tratada como “hino do povo brasileiro” no fim dos anos 70, quando foi lançada pelo cantor paraibano. A música agora volta a se renovar – ou, na verdade, a provar sua atemporalidade – sendo citada em uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), aplicado neste final de semana.
Com o trecho “Vocês que fazem parte dessa massa/ Que passa dos projetos do futuro/ É duro tanto ter que caminhar/ E dar muito mais do que receber/ Ê, ô, ô, vida de gado/ Povo marcado/ Ê, povo feliz!”, a prova pedia para que os alunos apontassem uma interpretação sobre o comportamento coletivo criticado no trecho. As opções iam de militância política à passividade social – resposta dada como correta pelos gabaritos extraoficiais da prova (o gabarito oficial ainda não foi divulgado).
Quando compôs a canção, Ramalho afirmou que pensava nos nordestinos, que deixavam seus lares por causa da seca, em busca de trabalho em outras regiões — em determinado trecho, ele cita a Arca de Noé e os dirigíveis como meios de fuga. Por seu teor irônico, criticando o movimento de massas, a faixa de 1979 se revelou, no fundo, uma alfinetada à ditadura militar, que governava o país então. Curiosamente, a música voltou a cumprir a função crítica contra o regime militar, já que servidores acusaram recentemente o presidente Jair Bolsonaro de pedir que o Golpe de 64 fosse chamado na prova de Revolução, fazendo com que o exame ficasse com a “cara do governo”. Pedido claramente descartado pelos técnicos da prova.
O tom político da letra é ainda mais evidente por sua referência ilustre, já adiantada no título: o livro clássico do inglês Aldous Huxley (1894-1963), Admirável Mundo Novo. Na distopia lançada em 1932, a sociedade vive sob regras autoritárias, que exaltam a produtividade e o progresso, e decidem até com quem as pessoas devem ou não procriar, com o intuito de alcançar uma genética exemplar. Assim, o mundo vive sob a aparência de felicidade e perfeição, sendo, no fundo, o completo oposto. O excesso de controle social e a falta de reflexão dos indivíduos sobre a obediência cega sãos os grandes temas do livro que, às vésperas de completar 90 anos, prova que continua deveras atual – assim como a vida de gado de Zé Ramalho.