Nos anos 1930, o poeta americano T.S. Eliot (1888-1965), já internacionalmente celebrado, decidiu presentear seus afilhados com uma série de poemas sobre gatos. Virou um clássico, obra-prima da literatura infantil que serviria de inspiração para o musical Cats, da Broadway. “É fácil pôr um cão na linha — é só fazer uma cosquinha / ou um carinho no seu queixo / que ele é só riso e remelexo. / … pra um gato vir a tolerar / ser seu amigo e te aceitar / dê algo que ele não rejeite / como um pratinho só com leite / de vez em quando aceitará / um caviar, ou um foie gras…”, escreveu, aqui na tradução de Caetano W. Galindo, para então avisar que “GATO NÃO É CÃO”, em capitulares estridentes. O que T.S. Eliot intuía, e outros tantos gênios das letras percebiam, como Ernest Hemingway e Jorge Amado, ao conviver com bichos de estimação, a ciência acaba de comprovar: felinos não são como canídeos.
Um estudo recentemente conduzido pela prestigiosa Universidade de Kyoto, no Japão, mostrou que, ao contrário dos cães, os gatos carregam um traço de personalidade peculiar — eles não evitam estranhos que se comportam mal com seus donos. No experimento, um gato observou seu dono tentar abrir uma caixa, enquanto dois estranhos estavam sentados ao seu lado. O proprietário então pede ajuda a um deles. Em um teste, o estranho o ajuda na tarefa. Em outra situação, o humano se recusa a auxiliá-lo. O outro estranho ficou sentado passivamente, sem fazer nada, nas duas situações. Em seguida, eles ofereceram guloseimas ao felino. O gato degustou fartamente o petisco, sem mostrar preferência pela comida oferecida pelo ajudante nem recusar a dada por aquele que não quis ajudar. Os pesquisadores haviam feito o mesmo teste com cachorros, que evitaram a comida oferecida por quem não auxiliou o dono. A explicação está atrelada à evolução das espécies. “Os cães foram capazes de se tornar parceiros cooperativos com os humanos por meio da domesticação baseada na alta sociabilidade de seu ancestral, o lobo”, disse a VEJA Hitomi Chijiiwa, a principal pesquisadora do estudo de Kyoto. “Os antepassados dos gatos, os gatos selvagens, eram caçadores solitários e, mesmo na domesticação, os felinos não foram selecionados para cooperação com humanos.”
O trabalho é relevante, ao abrir uma janela, mas não oferece certezas. Algumas experiências mostram que os bichanos desenvolvem laços emocionais com seus donos. “O gato gosta do tutor, é amoroso a seu modo, que é diferente dos cães, mas seu instinto de sobrevivência fala mais alto”, diz a veterinária Kellen Oliveira, presidente da Comissão de Bem-Estar Animal do Conselho Federal de Medicina Veterinária.
Gatos, enfim, vivem conosco, mas não dependem totalmente dos donos — certamente não no sentido da dependência emocional apresentada pelos cachorros. Domesticados há 9 500 anos, eles não parecem completamente afeitos aos humanos. Os gatos têm várias atitudes que parecem desafiar qualquer explicação racional, o que lhes confere grande parte do seu charme: o ritual de avançar sobre um cobertor, o hábito de deitar o corpo em cima do teclado do computador, o jeito de ficar encarando com olhar fixo uma parede — e, talvez o mais dramático, o ataque de maluquice depois de fazer cocô. Não são, definitivamente, como cães — e ter um ou outro, ou ambos, vai do gosto e da personalidade do freguês. A infidelidade felina não é necessariamente ruim, é apenas um jeito de ser.
Publicado em VEJA de 17 de março de 2021, edição nº 2729