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Ferramentas de autopublicação libertam autores do domínio das editoras

Simples e gratuitas, plataformas abrem uma fonte de renda apetitosa a veteranos e iniciantes

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h44 - Publicado em 28 jun 2019, 07h00

Ser recusado por uma gran­de editora tornou-se um clichê da biografia de escritores. De Jane Austen a J.K. Rowling — para ficar só na literatura inglesa —, autores clássicos e best-­sellers enfrentaram a rejeição. Até recentemente, o escritor tinha duas vias para chegar ao público: bons contatos fazendo a ponte com uma editora ou os custos da publicação independente, que não conta com uma distribuição profissional. Foi preciso o livro desapegar-se do papel para a engrenagem mudar: a tecnologia ofereceu novas e apetitosas alternativas, com liberdade criativa (ao custo, é verdade, de um menor controle de qualidade editorial) e remuneração direta. No Brasil, uma nova geração de autores começa a desbravar essas possibilidades, sobretudo através da Amazon. Vão de escritores de fantasia que já ultrapassaram a difícil marca dos 100 000 livros vendidos, como FML Pepper, aos que cultivam ambições mais estritamente literárias, como Mauro Maciel, passando por autores que ocupam o nicho do empreendedorismo e oferecem alternativas profissionais em tempos de desemprego, como Marlene Mukai (leia o perfil dos três ao longo da reportagem.)

Fátima Moraes Pimentel
(Jonne Roriz/VEJA)

Namorada da morte

Presa à cama por meses devido a uma gravidez de risco, a dentista Fátima Moraes Pimentel, de Niterói, decidiu se arriscar na escrita. Sob o nome FML Pepper, lançou pelo KDP, programa de autopublicação da Amazon, a trilogia juvenil Não Pare!, apelidada de “Crepúsculo brasileiro”. Não, a protagonista adolescente não se envolve com um vampiro, como acontece na série da americana Stephenie Meyer: ela se apaixona pela própria Morte. “Tentei uma editora e agradeço até hoje o silêncio”, diz a escritora, que vendeu 120 000 exemplares. Ela segue lançando e-books por conta própria, mas a editora Valentina se encarrega da versão impressa. Apesar do sucesso, Fátima não desativou o consultório odontológico.


Há uma boa coleção de sucessos que começaram fora da indústria editorial. E.L. James propalou as primeiras chicotadas de Cinquenta Tons de Cinza em um blog, e a poeta engajada Rupi Kaur postava versos no Tumblr antes de frequentar as listas de best-­sellers. A revolução de fato começou em 2007, quando o gigante Amazon lançou o Kindle, leitor digital que provou a viabilidade do e-book. Em seguida, veio uma ferramenta para servir aos autores: o Kindle Direct Publishing (KDP), que permite a autopublicação gratuita. Foi no KDP que Andy Weir começou a vender, a 99 centavos de dólar, Perdido em Marte — que ganharia uma adaptação cinematográfica que rendeu 630 milhões de dólares na bilheteria.

No mundo todo, passam da casa do milhão as obras publicadas pela ferramenta. No Brasil, são 100 000 títulos. Encontra-se de tudo: romances eróticos, policiais, juvenis, quadrinhos, autoajuda, fitness, empreendedorismo. Na lista semanal dos 100 mais vendidos da Amazon, trinta, em média, são fruto da autopublicação. Desde 2018, os autores do KDP já conseguiram, disputando com livros físicos, emplacar dezessete títulos na lista publicada por VEJA. Há até quem consiga um feito raro: viver de literatura. Tal é o caso de J. Marquesi, 34 anos. Juliana, nome abreviado na assinatura dos livros, cresceu em Piraí, no interior fluminense, onde não há livraria. Ex-­funcionária pública, hoje se dedica exclusivamente aos romances eróticos autopublicados. A perspectiva da independência financeira é viabilizada pelas vantajosas porcentagens oferecidas pela Amazon: se um autor leva cerca de 10% do preço de capa com uma editora, um e-book vendido pelo KDP paga de 35% a 70% — o que atrai até escritores já consagrados no mercado tradicional: Paulo Coelho e Augusto Cury optaram por contratos híbridos, em que a obra física é publicada por uma editora e o e-­book, de forma independente. Outro tipo de remuneração que subverte as regras do mercado é o recebimento por páginas lidas: os assinantes do Kindle Unlimited, que oferece um cardápio variado de livros para leitura temporária, também podem acessar obras do KDP. O autor recebe de forma proporcional ao que é lido — ou seja, se o leitor desiste logo no início, o ganho é menor.

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Mauro Maciel
(Jonne Roriz/VEJA)

Leitores por página

Mauro Maciel, 47 anos, ganhou o primeiro concurso literário no ensino médio, mas desde então se afastou da literatura. Recentemente, largou o jornalismo e o direito para ficar mais próximo da família e da escrita — reviravolta que inspirou o romance O Memorial do Desterro, sobre um autor desistente, vencedor do Prêmio Kindle de Literatura. Introspectivo, sem perfil em redes sociais, Maciel, que publica pelo KDP, da Amazon, sofre para divulgar sozinho suas obras, o que afeta a venda dos títulos. Vende pouco, mas ganha uns bons trocos pela remuneração por páginas lidas do Kindle Unlimited, programa de assinatura da Amazon. “É preciso manter o leitor curioso pelo próximo capítulo”, diz.


Para o escritor altruísta que deseja apenas ser lido, sem ganhar por isso, há o Wattpad — uma rede social literária com 70 milhões de usuários no mundo, 80% deles das gerações Y e Z. Pode ser um veículo para alcançar leitura ampla, a partir da qual buscar a atenção de uma editora. Ou de um estúdio: do Wattpad saíram obras adaptadas para o cinema e o streaming, caso de A Barraca do Beijo, de Beth Reekles, que virou um filme na Netflix.

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Mais que talento para a escrita, o profissional autopublicado precisa de criatividade publicitária para se destacar entre tantos outros e penetração nas redes sociais. “A interação um a um é muito valorizada no cenário em que o escritor é quem faz a própria divulgação”, diz Talita Taliberti, gerente do KDP Brasil. O número de cliques conquistados é proporcional à atenção dos famigerados algoritmos, que retroalimentam o processo, indicando aos leitores os livros que vão bem na loja. Além desse marketing digital, o autor que opta pela autopublicação deve buscar por conta própria (se não quiser negligenciar totalmente a qualidade do seu produto) funções tradicionais das editoras: revisão, edição, arte de capa. Daí surgem prestadores de serviço como o publicitário Eldes Saullo, de Itanhandu, Minas Gerais, que dá consultoria a escritores que publicam por programas como o KDP. Ele mesmo é autor de dezenove livros, a maioria deles com dicas sobre como publicar a própria obra.

Marlene Mukai
(Jonne Roriz/VEJA)

Novos moldes

Por vinte anos, Marlene Mukai, 54, de Santos, deu aula no ensino médio. Quando engravidou, deixou as escolas e seguiu o gosto pelo corte e costura. Abriu uma confecção e começou a desenvolver moldes. Criou um blog e um canal no YouTube. E publicou, pelo Clube de Autores — uma empresa de autopublicação —, quatro livros sobre modelagem, que vêm vendendo, juntos, 3 000 exemplares por mês — e são obras caras, na faixa de 80 a 250 reais. Na transição de professora para blogueira, youtuber e autora, a renda de Marlene aumentou seis vezes. Seus leitores, diz a autora, estão em busca de uma nova profissão — como ela mesma já esteve. “Ensino tudo o que sei”, diz.


Há ainda um modelo híbrido, digital e impresso, oferecido pelo Clube de Autores. A empresa vem crescendo, na contramão da crise do comércio livreiro, protagonizada pelas redes Saraiva (que, aliás, tem uma plataforma de autopublicação, a Publique-­se) e Cultura, em recuperação judicial. De 2017 para 2018, o Clube aumentou o faturamento em 40%, e o CEO Ricardo Almeida espera vê-lo crescer 50% neste ano. É um negócio versátil: o autor oferece seu livro no site e o leitor escolhe se quer o e-book ou o impresso. Se optar pelo livro físico, uma única cópia será impressa por encomenda. Essa impressão unitária costumava ser vista como impraticável pelas editoras. Almeida, porém, vê a crise como aliada. “Ficou mais fácil negociar com as gráficas”, diz. Os autores mais bem­-sucedidos do Clube recebem direitos autorais mensais na casa dos 10 000 a 15 000 reais. Ainda muito longe de um Dan Brown, sim — mas o mesmo livro, na gaveta, não renderia nada.

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Com reportagem de Amanda Capuano

Publicado em VEJA de 3 de julho de 2019, edição nº 2641

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