Decidi morar em Portugal há mais de uma década, o que foi crucial para minha carreira. Acabei me formando na prestigiada Sociedade Nacional de Belas Artes e tive a oportunidade de expor meu trabalho em importantes espaços pelo país. Neste ano, fui convidado pelo Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia de Lisboa, o MAAT, para integrar a exposição interferências. E comecei a criar. Em um pedaço de pano, reproduzi uma frase que fazia parte de uma coleção de cartões críticos à colonização portuguesa no Brasil. Nasceu assim uma bandeira rosa gigante que dizia, em letras garrafais: “Não foi descobrimento, foi matança”. Colocaram a obra bem na saída da exposição. Já esperava que haveria uma reação ao tom provocativo, o que, para mim, é também a função do artista. Mas a repercussão foi bem maior do que imaginei. De repente, virei alvo de uma enxurrada de mensagens de ódio nas redes. “Volta para a sua terra”, disparavam. Outras questionavam meu talento. Fui achincalhado e cancelado. Um professor de direito da Universidade de Lisboa sugeriu um boicote à mostra e um parlamentar do Partido Conservador afirmou que se tratava de uma ofensa à história nacional.
Na verdade, foi um ponto fora da curva de uma sensação de hostilidade que me ronda com alguma frequência. Além de ser brasileiro, sou negro, e a discriminação, a meu ver um dos motores do episódio, se pronuncia em meu dia a dia. Em 2020, vivi algo que me dilacerou. Participei de uma mesa de debate com renomados artistas portugueses e trouxe à baila uma questão para refletirmos juntos: estávamos debruçados sobre uma fotografia em que faltava diversidade, apenas com homens brancos. Na hora, a conversa seguiu no campo filosófico, em nível elevado. A surpresa veio depois. O vídeo do evento, da Câmara Municipal de Lisboa, foi publicado, e minha fala havia sido silenciada. No trecho em que eu aparecia, a legenda estava coberta com uma tarja preta. Recebi um telefonema da produção avisando que os artistas tinham ameaçado me processar, caso o vídeo circulasse na íntegra. Eles se viram certamente expostos e eu, humilhado. Cheguei a ter um princípio depressivo, tamanha a tristeza diante de postura tão ofensiva.
Quando voltei à cena, depois de um bom tempo recluso, retomei com a certeza de que queria percorrer uma trilha artística questionadora, cutucando o passado colonizador de Portugal, uma boa reflexão. Por aqui, ainda é contada uma história de cunho romântico sobre a colonização, que passa ao largo de todos os percalços, da violência e da exploração. O tema até hoje está no rol dos tabus, um vespeiro difícil de remexer. Claro que não são todos os portugueses que têm um olhar preconceituoso sobre os imigrantes, mas não dá para fingir que a xenofobia, um mal de raízes históricas, inexiste. Não raro, esbarro com brasileiros que se mudaram para cá e começaram a imitar o sotaque local, para se misturar à multidão e escapar da discriminação. Até eu cheguei a fazer isso. Não queria ouvir que “falo errado”, como já aconteceu inúmeras vezes.
Mesmo com tantos obstáculos, não deixo Portugal, um país cheio de cultura e qualidades. Levo uma vida mais tranquila e tenho à frente um mercado de trabalho com mais oportunidades. A escolha de mudar de continente ampliou meus horizontes e me fez entender melhor a identidade brasileira. Não me arrependo de ter atravessado o oceano. Os problemas estão aí e machucam. Doem não só em mim, mas também em outros estrangeiros. Mas acredito que, aos poucos, o país vai passar a pensar abertamente sobre seus preconceitos sedimentados. E quero que minha arte, mesmo que gere um desconforto inicial, possa dar alguma contribuição a essa virada de página.
Rodrigo Saturnino em depoimento dado a Duda Monteiro de Barros
Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802