“Fui salva por vários anjos”, diz escritora que perdeu o braço por ataque de pit bulls
Roseana Murray, 74 anos, celebra recomeço com novo livro

Há uma frase que li na juventude e nunca saiu de mim que diz: “Quem, se eu gritasse, entre a legião de anjos, me ouviria?”. O trecho das elegias do poeta austríaco Rainer Maria Rilke me impressionou tanto que acho que foi assim que nasceu em mim meu novo livro de poesia, Anjos (Editora FTD). Os anjos são figuras tão bonitas, antiquíssimas. Acho que eles estão entre nós e digo isso sem ter em mente uma religião específica. Acho que podemos ser anjos uns para os outros. E creio que só estou viva hoje graças a vários anjos humanos que me ajudaram e que me ouviram quando fui atacada por três pit bulls, em abril de 2024. Naquele momento, ocorreu uma confluência de tantas situações e pessoas que, se elas não estivessem ali por alguns minutos, eu teria morrido.
Eram 5h50 da manhã, eu acordara muito bem e estava feliz indo para a academia. Foi quando olhei e avistei os cachorros. Voltei para casa e fechei o portão. Mas pensei por alguns segundos e decidi sair de novo. Eles me conheciam, me viam passar na rua todos os dias através do muro da casa. Mas não sabia quão perigosos eram. Eles me derrubaram em segundos. Me jogaram no chão e começaram a arrancar pedaços do meu braço e do meu rosto. Gritei muito por socorro. Foi quando um maratonista que corria ali perto surgiu e tirou os cães de cima de mim. Só lembro de pedir por ajuda e dizer que estava com muita dor. Vi pessoas ao longe, meu marido e a ambulância. Lembro de ser levada para o helicóptero e para o hospital. Vi o mar e ainda pensei: “Que lindo”. Em seguida, apaguei. Só voltei depois da cirurgia. Perdi muito sangue, porque minha artéria se rompeu. Meu irmão, que é médico, falou que cheguei ao hospital em choque, praticamente morta.
Quando estava internada, criei um texto na minha cabeça que virou o livro infantil O Braço Mágico. A escrita me curou do trauma. Agora, consigo falar abertamente sobre tudo o que me aconteceu — e vejo até um pouco de magia em cada momento. Muitas coisas convergiram para que eu fosse salva. A começar pelo maratonista, chamado Eduardo Neves. Geralmente, ele corria em outra rua e, nesse dia, resolveu correr pela praia. Foi ele quem primeiro me socorreu. O fato de ter um helicóptero e um carro de bombeiro disponíveis em Saquarema (RJ), onde tudo ocorreu, agilizou meu resgate. Fui enviada para o hospital certo, com uma equipe do SUS toda preparada para me receber. Entre eles, estava um médico que é sumidade em amputação. O time de cirurgia plástica logo trabalhou no meu rosto. As enfermeiras cuidaram de mim com muito carinho. E uma médica me convenceu a tomar um remédio experimental horrível, mas que foi ótimo para a cicatrização. Então, vejo um pouco de magia em tudo isso. Considero que todos eles eram anjos.
Me impressionei com o tsunâmi de amor que recebi. Tantas pessoas rezaram, mandaram presentes. Minha casa virou um ponto de peregrinação de pessoas para me ver, para ver se eu estava viva mesmo. Desde então, minha percepção da vida mudou. Sinto que ganhei uma nova chance, sabe? Tenho consciência disso todo dia. Minha percepção sobre o mundo ao meu redor aumentou. É um presente. Tenho 74 anos e fico feliz de poder viver plenamente e ainda realizar sonhos, como lançar novos livros. Me adaptei à vida sem um dos braços. Tentei usar uma prótese, mas não deu certo, pois é muito pesada e me deixava com uma sensação de asfixia. Hoje, faço quase tudo de que preciso sem ajuda. Faço musculação e caminho com bastante equilíbrio. Vivo para os meus livros, para a literatura, para os meus projetos. Tudo isso ocupa a minha mente, a minha alma. Os livros são o meu refúgio.
Roseana Murray em depoimento a Raquel Carneiro
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2025, edição nº 2956