Jorge Amado, o mosaico
A biografia escrita pela historiadora e jornalista Joselia Aguiar revela múltiplas e insuspeitas facetas do autor de 'Gabriela, Cravo e Canela'
Começo pelo princípio — o título: Jorge Amado — Uma Biografia. Chamam atenção sua modéstia e concisão. O artigo indefinido assinala a incompletude incontornável da tarefa; aliás, encarecida pela autora: “Concluo sete anos de trabalho com a certeza de que Jorge Amado é uma área de investigação interminável, que ainda deve ser explorada em muitos campos”. Portanto, considerar esta a biografia “definitiva” seria uma desleitura do projeto da jornalista e historiadora Joselia Aguiar. A ausência de subtítulo tanto evita a tentação de Rosebud, que reduz a complexidade de uma vida a um sentido unívoco — como ocorre com a famosa palavra final do protagonista de Cidadão Kane —, quanto convida o leitor a imaginar sua versão de Jorge Amado. E não faltam alternativas! Eis o ponto alto do livro: Joselia Aguiar compôs um notável mosaico, no qual a riqueza do personagem é sublinhada pela multiplicidade de facetas.
Para os que se interessam pela precocidade artística: “Quando completou 9 anos, iniciou um empreendimento jornalístico, A Luneta, feito a mão e constituído de uma miscelânea de noticiário colhido em outros veículos e apuração na vizinhança”. E como o filho é mesmo o pai do homem, na intuição do menino desenhou-se um método seguido em obras futuras — por exemplo, em seu sexto romance, Capitães da Areia, publicado em 1937 e prontamente proibido pela ditadura do Estado Novo. Aos 25 anos, Jorge Amado já se havia firmado como um dos líderes da literatura brasileira.
Um Jorge Amado pouco (ou nada) conhecido é apresentado ao leitor. Trata-se do jovem comprometido com a profissionalização do escritor e interessado na internacionalização da literatura nacional — e não apenas na promoção de sua obra, bem entendido. Um emprego na Livraria José Olympio em 1934 teve um papel decisivo. O autor de três romances (Jubiabá saiu no ano seguinte) “conseguiu uma vaga como responsável pela publicidade, e que consistia em redigir os textos de divulgação, acompanhar a imprensa e os livreiros”. Jorge Amado viu no trabalho muito mais do que “uma possibilidade de reforçar o caixa”. Era sobretudo uma verdadeira lição das coisas do universo dos livros.
Ainda nos anos 30 principiou a pavimentar a sólida trajetória internacional: “O giro pelas Américas, muito longe de significar descanso, tinha um sentido profissional. Encontraria escritores e editores no esforço de fazer sua obra circular”. No caminho, uma parada revelou uma surpresa grande e grata: Porto Alegre, ou seja, a Livraria e Editora Globo, vale dizer, Erico Verissimo. Jorge Amado derramou-se em elogios numa carta a José Olympio: “Um colosso, um mundo”.
Há mais: “Pela América hispânica, prosseguiu a pesquisa sobre editoras, coleções e livros populares”. Este novo perfil de Jorge Amado permitiu a Joselia Aguiar desfazer um mito persistente relativo ao ponto de partida para a internacionalização de sua obra: as traduções teriam começado nos países da Cortina de Ferro — como se dizia no distante século XX. “Inusitado por tratar-se de um comunista, o caminho nos Estados Unidos se revelou mais fácil que o da Rússia”, esclarece a biógrafa. O interesse do renomado editor Alfred Knopf por Gilberto Freyre favoreceu a publicação de Terras do Sem-Fim. De fato, “o tradutor foi o mesmo de Freyre: Samuel Putnam, pesquisador das relações raciais no Brasil. Violent Land, como ficou em inglês, saiu em 1945”. Antes, contudo, proeza ainda maior: aos 26 anos, Jorge Amado obteve um reconhecimento ímpar. Em 1938, Jubiabá, vertido como Bahia de Tous les Saints, apareceu pela prestigiosa editora Gallimard. Anote-se o requinte: “pela coleção Blanche, que oferecia aos leitores franceses a melhor nova ficção — a lista incluía Ernest Hemingway, John dos Passos e um novato que causaria furor, Jean-Paul Sartre”. Somente em 1956 outro título brasileiro foi publicado: Infância, de Graciliano Ramos, lançado como Enfance. Os dois autores foram diletos amigos, e Amado admirava profundamente a literatura de Ramos.
A pesquisa de Joselia Aguiar ilumina um aspecto que, sem ser totalmente desconhecido, nunca foi devidamente apreciado: a força da presença de Amado na cena literária internacional, circulando em alto nível e com uma desenvoltura incomum até pelo menos a geração do boom no fim dos anos de 1960. Fiquemos com dois exemplos. Foi estreita sua amizade com Pablo Neruda — aliás, testemunha ocular da conquista da companheira de toda a vida. Em 1945, Neruda e sua mulher, a pintora Delia del Carril, acompanhavam o escritor brasileiro e Zélia Gattai quando Jorge arriscou tudo num lance de cravos vermelhos. Inesperadamente pediu ao motorista que conduzia os dois casais que parasse o táxi e, “pela porta aberta, cobriu a moça Zélia, dos pés à cabeça. ‘La lluvia de claveles rojos en la madrugada’. Neruda recordaria a cena até o fim da vida”. A proximidade com o poeta chileno evoca o vínculo com Jean-Paul Sartre — vínculo esse reforçado durante a visita do filósofo e de Simone de Beauvoir ao Brasil em 1960, pois Jorge e Zélia os acompanharam frequentemente. “Sentimos simpatia imediata quando nos conhecemos”, Simone anotou nas memórias.
Amizade e engajamento político: escritor, poeta e filósofo eram stalinistas e tiveram de esperar a denúncia dos crimes de Stalin, realizada em 1956 no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, para finalmente abandonar o dogmatismo político. Recorde-se que Jorge Amado foi deputado constituinte em 1946 pelo PCB. Quando se afastou da militância rígida, retirou de circulação O Mundo da Paz, livro de propaganda dos países comunistas, por considerá-lo sectário demais. O afastamento do partido se traduziu numa explosão ficcional: em onze anos, sete títulos, e pelo menos quatro obras-primas de sua literatura, Gabriela, Cravo e Canela (1958), A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água (1959), Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966) e Tenda dos Milagres (1969). O escritor definitivamente deu xeque-mate no militante e nunca mais comprometeu sua independência artística.
Joselia Aguiar apresenta uma novidade de peso ao sugerir que a crítica universitária não se dedicou à leitura cuidadosa da obra; pelo contrário, contentou-se em discutir este ou aquele livro, projetando essa análise particular para o todo da literatura de Jorge Amado. O antídoto é preciso: um estudo sensível de cada título, associado a uma compreensão de conjunto. “A adesão à oralidade, defendida nos primeiros livros (…) seria substituída pelo empenho em retrabalhar o texto. As frases e os parágrafos, quando comparados, tornam evidente a diferença entre o Jorge jovem e o maduro, em seu estilo propriamente amadiano.” E há outras novidades importantes na pesquisa da autora. Hora, portanto, de fechar esta revista e correr à livraria mais próxima.
Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2018, edição nº 2612